sexta-feira, 17 de dezembro de 2010

O retrato


Uma cadeira vazia. Penosamente vazia. E uma réstia de luz como um caminho.
Uma poeira brilhante dança no ar. Cheira a tempos antigos.
Afasto as teias que bordaram cortinas em portas que já ninguém abre. Restos de memórias penduradas miram-me de esguelha.
Sinto as tábuas ranger sob os meus pés. Acautelo-me.

Uma arca a um canto, uma manta abandonada e, de repente, sinto-me intrusa.
Encosto-me a uma parede e deixo-me cair devagarinho. De onde estou ninguém me poderá ver. Uma janela aberta à minha frente deixa entrar a luz e alguns sons. Deixo-me ficar.

Vejo-te então. Lembro-me quando eras assim. Deixo que tudo aconteça de novo outra vez. Afinal vim mesmo para te visitar. Nesse dia tínhamos feito uma longa caminhada. Tinhas-me mostrado os teus lugares secretos, aqueles sítios a que ninguém dava importância e que por isso estavam ainda tão bem resguardados. Fotografei tanta coisa! Não parámos de rir e de falar. Foste o meu modelo e eu o teu. Foi quando te fiz essa fotografia que agora encontro aqui.

Apanho-a. Limpo-a. Perdeu a cor.

Foste-te daqui há muito. Levaste tudo. Levaram tudo. Ficaram as memórias que tenho de ti.

Vou agora também. Deixo-te na cadeira que tantas vezes te aliviou o cansaço.
Para que não fique vazia, nunca mais.

Nenhum comentário:

Postar um comentário