quinta-feira, 14 de julho de 2011

Um piano ao longe


Uma tábua a gemer surpreende-lhe os passos presos na melodia de um piano que se ouve longe.

Há muitos anos sonhara a casa. Juntara dinheiro, rabiscos, rascunhos e recortes. Sim, já sabia como ela seria ainda antes de a ter de pé. Procurou quem lha construísse. Os melhores. Trabalhou a par com eles. Tinha o sabor da casa nas mãos. Escavou-lhe as entranhas e ergueu-a sólida. Depois acendeu-lhe uma lareira, bebeu um vinho branco e leu um livro ao cair da noite. Todas as noites. Um piano ao longe.

Um dia trouxe a mulher que lhe incendiou o peito e floriu a alma. Na casa as janelas sempre abertas deixaram os sorrisos voar para os relvados, onde cresciam agora crianças. Foi tudo rápido, foi tudo cedo. E as manhãs caiam e as noites levantavam-se penduradas em estrelas a iluminar sonhos sempre a crescer de pernas altas. Corriam mundo, os sonhos. Os filhos também. A casa ficava. Inabalável como ele a fizera.

Dormia como se a carregasse no seu colo. Enlaçava-a e mesmo sem se dar conta balança-a docemente. És o meu mar, dizia-lhe ela. E tu um peixe, meu amor. E deixava-a entrar em si. Para além de tudo, o inesperado. As mãos são fortes e têm cheiro. Não precisam da voz e em todos os silêncios se encontram.

Ainda agora que ela para sempre se afogara nas suas memórias e só mar ficara. Colo eterno e a balancear rumos. Para a frente, ouvia-lhe ele. E não precisava de vasculhar o tanto que ficara para trás.

Precisava de arranjar aquele degrau. Calar-lhe o gemido. Ir até à casa do vizinho com uma garrafa de vinho branco e beber com ele enquanto ouvem o piano. Talvez acendam a lareira e falem dos livros que leram ou das mulheres que nunca tiveram.

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