quinta-feira, 23 de junho de 2011

Vestir-se de nada

Todos os dias veste o sorriso que lhe fica cada vez mais apertado. Demora cada vez mais a compô-lo e a estendê-lo. Já tem dificuldades em abotoá-lo. Começa a esgaçar em alguns lados e disfarça-o com remendos que dificilmente contêm a força das coisas que dentro de si esconde.

Todos os dias. Com o despertar do relógio. E tão assíduo assim.

Camada a camada, arruma as despedidas, as perdas, as desilusões. As dores, enfim. Nódoas negras a precisarem de camuflagem.
Não lhas apontem a dedo pela rua, nem a queimem os olhares que nada sabem, afinal.

Só o espelho a desvenda. Até o sorriso se rasgar.

E sem cobardias, enfrentar-se inteira. Abrir diques e largar lágrimas como quem abre sorrisos, com a mesma simplicidade.

terça-feira, 21 de junho de 2011

A teu lado


Ouso pousar-te a minha mão no teu ombro quando te saúdo, hoje.
Falo-te baixinho. Temo estremecer esse sentimento que conheço tão bem.
Como nos perdemos de repente das pessoas que ainda agora aqui estavam connosco e não voltam mais...
Dizem-nos que nas memórias e que também dentro de nós no quente dos nossos corações ainda permanecem. Mas quando as procuramos no abraço e no olhar, esfumam-se e vimo-nos em conversas que não passam de monólogos ou a contar histórias que um dia acabam porque tiveram o seu tempo esgotado.
Isso. Esgotaram.
Como se o limite tivesse sido ultrapassado. Um prazo de que não tivéssemos dado conta,arbitrário, injusto, cruel, se tivesse imposto estupidamente.
Falar-to de mansinho ou gritar-to teria o mesmo resultado. A inevitabilidade da nossa mortalidade. De novo, a mortalidade, a finitude.

E lá vamos nós, a cada dia, deixando pedaços que esperamos um dia reencontrar.
Sim. A esperança existe. Num ponto qualquer dentro de nós.
Confia em mim.

segunda-feira, 20 de junho de 2011

Não me batas à porta


Há portas que devem manter-se fechadas.
Sempre.
Para isso servem as fechaduras.

Guardar as chaves em sítios secretos e secar as memórias dos lugares impossíveis.
Partir e construir.

Sempre haverá portas para abrir e para fechar.
E todas as chaves serão diferentes.

sábado, 18 de junho de 2011

Notas finais

Não bebo água, dizia-te. Muito pouca, só raramente o faço. Mas as tuas palavras e as que dos outros me trazes, dessas, estou sempre sedenta. Mergulho nelas, até. Exercícios de apneia que me fazem crer que é sempre possível mais. Para além de tudo que afinal não sei. Porque me tocam e acariciam como se fossem, de tule, transparentes, desvendando segredos ainda não inventados.


(Imagino-te dizendo-as. Mas, preferia mesmo que mas lesses com a ponta dos teus dedos.)
há coisas em mim que te esperam
mas as esperas todas morrem
gostava que fossem em ti.


...e hoje não quero ser corpo e assim sendo que nada desejes de mim para além daquilo que deixo sempre que parto.

Um único véu



imagem de José Mimoso
Desprendem-se em sons desta voz que te incendeia e não são brasa, não são ferro... de tinta indelével tatuam palavras que adivinhas sentir. Como dedos, pétalas, a mão inteira do desejo a abraçar-te por dentro. Inteiro.

Há promessas, digo-te, neste rio em marcha descompassada, para a foz, que espera em turbilhão acolher-te e abrigar-te. Repousar, enfim.
"...e tu maresia
continuas incógnita.
anda.
despe esse manto salgado
onde te escondes...."

Um único véu (como neblina).
Pérola rosada embutida por tuas mãos colhida. uma lágrima, um gemido que teus lábios nos meus calam.
Um único véu (como neblina) por testemunha.

segunda-feira, 6 de junho de 2011

Um dia acontecer-lhe-ia


Sim, um dia acontecer-lhe-ia. Embora nunca acreditasse nisso. Prometera a si próprio que nunca deixaria tal coisa fazer-se. Bastara-lhe a vida ter-lhe já trocado as voltas por demasiadas vezes. Agora fincava os pés no propósito de só fazer o que então prometera dela fazer. Nada mais. Daí nunca se arredar. Até o Nunca acabar. Como todos os nuncas e até sempre. Ele sabia disso mas não estava ainda preparado. Nunca se está.

Quando a conheceu disse-lhe o mesmo que dizia a todas as outras. Nunca se escondia atrás de nada. Duraria enquanto durasse. Nunca mais. Havia vida para além dela. Não vivia para ninguém. Prometera-o há muito tempo.
Também ela. Assim dava tudo certo. Também ela nada mais queria. Gostava do que via agora, ali, à sua frente. O que viria depois era só depois. O que estava antes pertencia a um tempo que não era o dela. Vivia dos instantes que lhe abriam sorrisos. Das palavras feitas desejo, dos sonhos ali erguidos, dos abraços sentidos, dos beijos trocados e de partir e não se importar de voltar.

Os momentos eram só momentos tão eternos quanto pudessem ser. Sem remorsos nem saudades. Mas inteiros. Sempre. E sem regresso. Nunca. Voavam embalados no sorriso que ambos transportavam. Em todos os momentos.

Um dia ela voou mais alto. Ao lado de alguém que conheceu. E abraçou de sorriso aberto. Ele continuou o seu caminho. De tempos a tempos, na companhia de outra também, sentia-lhe a falta do sorriso, do cheiro das palavras livres. Murchou-lhe na cara o sonho e a semente da saudade regada pela ausência cresceu-lhe no opaco dos olhos.
Acontecera-lhe finalmente. Foram as chuvas desse Outono que lhe lamberam a cara repetidas vezes. Ninguém o confortou.
Mulheres não lhe faltaram.

Ela voava numa Primavera qualquer.