segunda-feira, 27 de dezembro de 2010

Adeus

Adeus, diz-se baixinho na esperança que se percam as despedidas nas caudas do silêncio, já feito, em regressos que as esperanças tecem. Assim, como quem sussurra segredos por inventar.

Histórias dum tempo qualquer


Não tinha aparecido. Nem avisara sequer. Nada fizera prever que não viesse. Ainda ontem tinha acertado pequenos detalhes e lembrara-se até de mais uma pequena coisa. Uma coisa simples, mas que lhe dava a certeza que ele se tinha empenhado a sério no que iam fazer. Por isso fizera tudo como combinado e estava pronta e a horas no local que tinham acertado.

Estava frio e lá fora caía uma chuva de gotas pesadas. As pessoas passavam apressadas, algumas sem chapéus de chuva abrigavam-se onde podiam. Ficou a vê-las passar, esquecida de o ter sido.

Na mesa, um galão quente aquecia-lhe as mãos.
Um rosto colado ao vidro desperta-lhe a atenção. Dois olhos negros, cabelo preto, escorrido, meio despenteado, mãos ao lado da cabeça abrindo lugar para ver melhor e mais longe. Não tinha mais de 8 anos. Procurou-lhe o olhar, piscou-lhe o olho. Ele baixou os olhos cobrindo-os com as mãos. Ia virar-se e não resistiu. Olhou pelo canto do olho interrogando-se. Um novo piscar de olhos e desatou a correr rua abaixo.

Parara de chover. Levantou-se, lembrou-se do que tinha para fazer. Ia fazê-lo sozinha. Preferia tê-lo feito com ele. Ele é que tivera a ideia.
Fazia hoje anos. Em datas destas passava sempre despercebida, ninguém se lembrara ainda e ela com tanta azáfama também se esquecera. Pegou no carro e levou-o até ao fim da rua, ali já. Estacionou-o mesmo em frente do velho prédio, coberto agora de cores alegres e pinturas feitas por mãos de crianças. Esperavam-na já.
Vieram ter com ela e ajudaram-na com os sacos enormes que transportava atrás no carro. Vá indo e vá ver se está tudo como queria que estivesse!
Não, respondeu-lhes. Tenho ainda de me vestir, O meu amigo não pode vir.
Não se preocupe, vá. Queremos que nos diga se falta alguma coisa. Não queremos ver sorrisos?
Convenceram-na. Foi pelo silêncio do corredor enorme. Há muito que conhecia aquelas paredes. Era no salão do fundo que tudo ia acontecer. Antecipava já tudo. Andava devagarinho e quase em surdina como se temesse destruir de alguma forma o momento. Entrou, abrindo a porta lentamente e olhou para dentro da sala, banhada de luz, vinda do pátio exterior. Uma árvore enorme, onde os desejos de cada criança pendiam esperando o momento mágico de serem realizados, estava no canto esquerdo encostado a uma porta para a varanda. Eram rodas de carros velhos que não andavam, cartas com segredos desenhadas com letras envergonhadas, peúgas que perderam o par, fotografias de quem já não viam há muito tempo, folhas duma revista dum anúncio a um brinquedo qualquer, bolas feitas de papel, aviões, embalagens de sumo usadas... sonhos de quem está a aprender a sonhar.
Enquanto olha para a árvore não se dá conta de que noutro canto oposto se começam a levantar as crianças que começam a cantar os Parabéns. Primeiro assusta-se, depois sorri. Vira-se para as crianças que agora estão de pé e ouve-os emocionada até ao fim. É então que percebe que não tinha sido esquecida nesse dia. Nasceu-lhe um sorriso maior. Percebeu o que ia acontecer e no fim depois de agradecer pede a todos que se sentem porque acha que este vai ser um dia especial para todos.

E foi. Saíram um pouco do salão, deixando todas as crianças com os presentes que tinham trazido. Sentados nas escadas que levavam ao pátio, debaixo do telheiro, olham agora para trás e pensam em todas as coisas que fizeram para tornar este dia possível. Ela recorda-lhe o desencontro e ri-se. Não estás zangada, pois não? Dá-me um abraço.

Lá dentro, um rosto pequenino, olhos negros, cabelo esguio, preto, despenteado, abre caminho no vidro embaciado com a palma da mão, fazendo círculos. Espreita para o telheiro e vê-a abraçada. Sorri. Sem querer, bate no vidro. Ela vira-se. Pisca-lhe o olho. Ele também. Depois vai brincar, feliz.

sexta-feira, 17 de dezembro de 2010

O retrato


Uma cadeira vazia. Penosamente vazia. E uma réstia de luz como um caminho.
Uma poeira brilhante dança no ar. Cheira a tempos antigos.
Afasto as teias que bordaram cortinas em portas que já ninguém abre. Restos de memórias penduradas miram-me de esguelha.
Sinto as tábuas ranger sob os meus pés. Acautelo-me.

Uma arca a um canto, uma manta abandonada e, de repente, sinto-me intrusa.
Encosto-me a uma parede e deixo-me cair devagarinho. De onde estou ninguém me poderá ver. Uma janela aberta à minha frente deixa entrar a luz e alguns sons. Deixo-me ficar.

Vejo-te então. Lembro-me quando eras assim. Deixo que tudo aconteça de novo outra vez. Afinal vim mesmo para te visitar. Nesse dia tínhamos feito uma longa caminhada. Tinhas-me mostrado os teus lugares secretos, aqueles sítios a que ninguém dava importância e que por isso estavam ainda tão bem resguardados. Fotografei tanta coisa! Não parámos de rir e de falar. Foste o meu modelo e eu o teu. Foi quando te fiz essa fotografia que agora encontro aqui.

Apanho-a. Limpo-a. Perdeu a cor.

Foste-te daqui há muito. Levaste tudo. Levaram tudo. Ficaram as memórias que tenho de ti.

Vou agora também. Deixo-te na cadeira que tantas vezes te aliviou o cansaço.
Para que não fique vazia, nunca mais.

segunda-feira, 13 de dezembro de 2010

Tenho um barco


Tenho em meu peito, ancorado, um barco.
Há muito tempo parado.
Águas calmas e serenas, fazem-no balancear suavemente. Sei-o ali. Pronto a viajar.
E no entanto, deixo-me ficar. Vejo chegar, quem chega e partir, quem parte.
Não tenho sede, ainda, de me fazer aos ventos.
Ouço-lhe as melodias, conheço-lhe as falas. E sei ainda dos bailados que em coreografias imprevistas, ensaia nos passos da vida.

Um dia, levantarei a ancora. Não precisarei de remos. Meu coração ditará o rumo e do meu peito em direcção ao teu, viajarei.

E o barco? Voltará ao ancoradouro que no meu peito construí. Para todas as viagens que ainda tenho de fazer. Para todas as partidas e regressos que o meu coração marinheiro ainda souber fazer.

Nem que seja para sair de mim.

Ontem


ontem, deitaste-te a meu lado.
deixei que o fizesses. abri-te mesmo o espaço que guardo nas tuas ausências.
aconchegaste-te de mansinho.
há quanto tempo não voltavas?

que tudo estava diferente e mesmo assim familiar. vagueaste, percorrendo-me como se me procurassesde novo.
deixaste que a luz que entrava no quarto me iluminasse o rosto. de joelhos, a meu lado, olhaste-me longamente.
brilhavam duas estrelas  no teu rosto que recordo, igual. nem mais uma ruga, nem mais brancas.
aparo-te uma estrela e atrevo-me a guardá-la. sinto-te a barba por desfazer.

levantaste-te e foste-te embora. não sem antes me dizeres que gostavas das mudanças em casa.
da janela, vi-te partir. na minha cama nem vestígios da tua presença. só no meu olhar o brilho da estrela que de ti guardei.

quarta-feira, 8 de dezembro de 2010

O rio da tua terra


Falaste-me do rio da tua terra e abri em meu regaço um leito para o deitares. Senti-te a fome de o abraçares e deixei-te fazê-lo. Esqueci-me das margens que o teu rio selvagem sempre galga para ir mais longe e assim me fugiu. E tu com ele. Na ânsia de mar.

Fosse hoje ainda, tivesse sido ainda antes e meu regaço teria sido o poiso do teu rio mesmo que por breves instantes.
Ainda sem margens. Quem sabe, um dia... a foz!

quinta-feira, 2 de dezembro de 2010

Gosto-te


Gosto-te.

E soletra devagarinho, pausadamente, cada silaba como se a mastigasse pedaço a pedaço, saboreando-a para melhor a guardar na memória dos paladares que ainda agora ensaiara.
Ouvira-lhe a expressão, aqui, pela primeira vez. Assim, do nada. Como um beijo ou uma carícia. Um gesto, só. Um sinal que lhe permitira entrar no seu mundo.

Gosto dos búzios que me deixam ouvir os segredos do mar, da areia que me deixa seguir as tuas pegadas, do mar que me deixa sonhar viagens, das gaivotas que me fazem querer voar... de caminhar a teu lado em silêncio, das gargalhadas que soltas quando uma onda te apanha de surpresa.

Gosto-te.

Agora no ecrã do telemóvel, encurtando a distância, reaviva-se o sabor do sal e o cheiro a mar. Ecoa a sua voz. Pousa-o suavemente onde tantas vezes se sentaram a olhar o cair do dia lá onde o mar toca os limites do céu. Escreve, letra a letra, a mensagem que lhe devolve. Na areia. É a água do mar que tantas vezes os testemunhou que a pouco e pouco a virá, lambendo, levar para junto dele. Sabe.

quinta-feira, 25 de novembro de 2010

O tempo da ausência


Há muito que deixara de contar o tempo e quando ele lhe disse agora com tal precisão há quanto tempo deixara de a ver, estremeceu. 3 meses, dez dias e 18 horas.

Tinha tudo corrido mal. Um dia cheio de desencontros. Como se nada tivesse que acontecer, nem aquele dia. Como se tudo fosse um rascunho pronto a ser amarrotado e posto no caixote do lixo ou queimado e se tivesse de recomeçar de novo. Alguém, nalgum sítio deveria estar a tentar rebobinar a vida de quantos naquelas horas tentaram acertar passos e palavras, porque na cabeça de todos o dia não passava dum argumento mal escrito, interpretado por actores mal ensaiados, com falas desalinhadas, saídas de filmes dobrados por actores suspeitos.
Ela só queria acordar do pesadelo que se tornara o dia. Convencera-se que dormia ainda e quando acordasse, a vida estaria no sítio de sempre. Alinhada, como as árvores da alameda da estação.

Lembrava-se das folhas, da cor, que cobriam o chão. A única recordação que naquele dia lhe trouxe um pouco de paz. Sempre gostara do Outono. Da cadência na queda das folhas, da despedida dos dias longos de Verão e das férias e muita gente num vai e vem que a confundia.

E de ele partir.

Já nem sabia muito bem como tal acontecera. Tinha tudo guardado para lhe dizer. Tempo para estar com ele. Finalmente ia poder fazê-lo e resolver tantas coisas que andavam a adiar... Aquele maldito telefonema pela manhã, a reunião de ultima hora, o furo mesmo em cima da hora marcada, o cansaço das desculpas, amo-te, gritado ao telefone. Não acredito em ti. Vou-me embora. Não vás. Acabou-se.

E de ele partir.

Era laranja forte a folha que apanhou naquele dia, faz hoje, 3 meses, dez dias e 18 horas, acabou ele agora de lhe dizer. Desceram duas gotas dos seus olhos que ele beijou. Amo-te. Sei!
Espera.
Da mala tira um bloco que abre. Entre as páginas uma folha já seca e descolorida. O tempo da tua ausência. Diz-lhe. Ele amarrota-a, deita-a fora.

Não há ausências. Estou aqui!

domingo, 21 de novembro de 2010

Enquanto houver memória


Estava a ouvir a mesma música de sempre. Repetia-a vezes sem conta e não se cansava. Servia-lhe como um vestido que já lhe tomara as formas e acomodava-se a todos os cantos dos seus sentidos, milimétricamente, suavemente. Lá fora, fizesse o tempo que fizesse , acontecesse o que acontecesse, nada a perturbava. Aconchegava-se e deixava-se levar, porque era preciso. Sabia disso. Era o seu espaço de evasão e conforto.

(No carro, em frente ao mar. Lugar e espaço comum.
Fila interminável de gente assim encaixotada, de olhos fixos no mar ao som duma música qualquer.)

E o mundo sempre a acontecer. Quando a noite caía ficavam os reflexos a brilhar presos em rastos de milhares de gotas que a pouca chuva, dum Outono envergonhado, deixava no asfalto. Era tempo de voltar a casa. E ao som da mesma música, ainda a mesma música, pensar no dia seguinte.
Desenrolar o casulo devagarinho, encolher as asas, respirar fundo e lembrar cada instante. Ter a certeza de que é sempre possível voltar. Enquanto houver memória!

quinta-feira, 18 de novembro de 2010

Já ali


Cansada de tanto esperar, acabou por se sentar ali mesmo. Agarrou numa revista que alguém ali deixara e começou a folhear sem qualquer propósito. Já nem sabia se tinha tempo ou se já se fora todo o que tinha. E nada lhe importava.
Quando saíra de casa logo depois de almoço tinha só aquilo para fazer, nada mais. Já desde a semana que passara que estava tudo combinado. Ainda ontem à noite, tinha visto no papelinho que guardara dobrado, o recado que dizia o local e a hora onde se devia encontrar com ele.
Podia ter sido uma brincadeira. E isso nem a incomodava.
Tinha saído naquela noite sozinha e entrara por acaso num bar que nunca antes tinha visto. Apetecia-lhe ver gente, nada mais. Ficar a um canto e olhar quem entrasse e saísse. Ausentar-se de si e imaginar-se na pele de quem entoava os risos. Fabricar histórias que imaginava nos gestos das pessoas que se cruzavam. Era só o que queria.
A primeira coisa que sentiu foi um toque no braço que a fez estremecer. Desculpe, não a quis assustar... Depois a conversa que acabou com o papel que agora transforma num pequeno barco que vai lançar ao rio que vê dali. Levanta-se e dirige-se à amurada.
São passos apressados na calçada que a fazem virar a cara. Não reconhece o dono das palavras que vai atirar à agua. Continua a caminhar.
Espera, deixa-me ir contigo. Reconhece-lhe a voz.

Percebeu agora porque nada lhe importava e o tempo não tinha medida. Percebeu porque era tão fácil deixar tudo assim. Era paz, tranquilidade, que saía dentro dele.

Esperou. Lançaram o barco na água. Sonharam-lhe destinos distantes, sabendo que pereceria já ali.

terça-feira, 16 de novembro de 2010

Como eu quero


Fez-se frio. Agora mesmo. Como se uma parede de gelo se erguesse entre tanto sol que ainda há pouco aquecia estas mesmas mãos que agora sinto a arrefecer. Dá-me as tuas. Sim, as tuas.
Só pelo tempo que leva o calor a voltar. Mais não. Podes ir depois.

Tinhas esta mania de me mandar embora. Sempre. Achavas que todo o tempo que te dava era demais e tu não eras quem eu queria.
Tantos cuidados e medos deixavam-me em sítios que visitavas por breves momentos só para cuidares de mim. E eu sentia-te a falta. Tantas vezes. Vezes demais.
Falavas-me de vez em quando de ti, de mim, de nós.
Descobria-te diferente. E renovava o meu amor por ti. Em gestos que não me deixavas construir e palavras que não me deixavas dizer-te.
Bastava um olhar teu para eu o saber. Guardava tudo dentro de mim.

Hoje estranho-te. E estendo-te as mãos. É o meu corpo que também te quero dar. Inteiro.
Para que embarques nele e em segurança possas viajar. Os rumos serão os teus.
Os nossos. Se assim quiseres. Como eu quero.

sexta-feira, 12 de novembro de 2010

Quando o Pedro voltar

Se fosses tu a dizer-me as palavras que agora ouço... se fosses tu e não outro.
Outro que não conheço e não sei se quero ouvir ou até... acreditar.

Bebia as tuas palavras, lembras-te bem. Conhecias o meu olhar atento. Sabias que não ouvia nem via mais ninguém. Eras o meu mundo.
E escondeste-te de mim. Deixaste que não visse o que todos os outros já sabiam.

Todos os dias te arranjava a roupa que vestias. Preparava o teu pequeno almoço. Estendia-te a pasta e no beijo que te dava ia todo o meu amor.
Em casa, enquanto trabalhava no meio dos papeis, olhava impaciente o relógio que teimava em fazer-se na hora do teu regresso. Eram as tuas palavras e o teu abraço que eu esperava.
Foste sempre a porta para o mundo que lá fora viajava e eu sonhava entre personagens que cresciam na tela branca do meu computador.

Hoje não foi o barulho da tua chave na porta que me fez levantar desta cadeira onde me agacho agora. Foi um toque que ainda sinto a vibrar na minha cabeça. ( faz que pare, faz que pare!)

Um colega teu ( sim, apresentaste-mo um dia, num jantar daqueles aprumados da tua empresa), cabisbaixo, sem saber muito bem o que dizer e como o dizer, (acompanhado por alguém que suponho ser o médico da empresa)apresentou-se e pediu para entrar e falar comigo. Fui tola em não ter adivinhado.
( e o maldito toque da campainha que não me sai da cabeça!)
E o Pedro, porque não veio ele também? Não se cruzaram? Ele foi trabalhar de manhã.

Porque não me falaste tu destas coisas? Sabes que te ouviria. E agora já sabia o que fazer. Porque não sei muito bem como se fazem estas coisas. Devo chorar, gritar? Ficar zangada?
Fazes-me falta.
Sinto este enorme vazio. E não sei que fazer dele. Nem o que fazer de mim.
O que devo eu fazer? Não aprendi isto ainda. Estou confusa.

Esperem, não pode ser. O Pedro não me disse nada. Ele não me disse que ia morrer.
E agora? Preciso dele. É dele que preciso.
Não entendem?!
Podem ir-se embora. Quando o Pedro voltar eu pergunto-lhe o que hei-de fazer!

quarta-feira, 10 de novembro de 2010

Esperança


Chegava sozinho a meio da tarde. Religiosamente. Procurava um sitio que lhe agradasse e deixava-se ali ficar. Quieto. Sempre muito quieto.
Parado como aquelas estátuas que se plantam no meio das ruas em lugares inusitados, parecendo ter pertencido sempre ali. Só as teias que algumas aranhas ali vão construindo para apanhar moscas imprevidentes, denunciam a quietude e a permanência de tais personagens esverdeadas pelo tempo.
Havia quem por vezes tropeçasse nele. Abanava ligeiramente, mexia preguiçosamente os olhos e retomava a posição inicial. Nada parecia demovê-lo. Se lhe seguíssemos o olhar não saberíamos o que procurar. Parecia ver para além de tudo e de todos.
Antes que a noite viesse, vinham buscá-lo. Bastava darem-lhe a mão e um sorriso. Olhava à sua volta e devagar, dava meia volta preparando-se para regressar a casa.

Contava-se que há muito tempo, teria perdido por ali alguém e não perdera ainda a esperança de a voltar a encontrar, um dia, no rosto de quem por ali passava.

Voltaria sempre. Até poder ou esquecer.

domingo, 7 de novembro de 2010

Até um dia...


As janelas estavam sempre abertas. Entravam, noite dentro, as luzes, que a cidade adormecida já não via, pela sala onde ela ficava embrulhada no silêncio. Todos já se passeavam pelos sonhos que só os olhos fechados permitem.

Ela esperava.

Há muito que esperava.
Sabia que a essa hora todas as palavras se juntavam num bailado todas as noites desigual.
Ficava a vê-las dançar. Sorria-lhes, dava-lhes a mão num passe mais complicado. Atrevia-se às vezes a convidá-las a dançar com ela.
Tímida. Logo recuava.
Arregalava os olhos e os sentidos para nada perder. Às vezes as palavras atropelavam-se e ela temia perdê-las.
Saíam desordenadas dos sítios a que pertenciam e deixavam de dizer as coisas como notas desobedientes numa pauta.
A musica saia desafinada e as palavras perdiam a vontade de dançar.
Saíam janela fora, talvez procurando a luz e os sonhos que na cidade a dormir aconteciam.

Levantava-se. Ainda ia até à janela. Talvez as pudesse agarrar...

Voltava, sentava-se em frente ao ecrã do computador e tentava, tecla a tecla pintar a dança que vira as palavras fazerem ainda há pouco.

Faltava-lhe a batuta. Essa varinha mágica, sem ela ficara em pousio. As suas melodias seriam escritas em silêncios. Até um dia...

sábado, 16 de outubro de 2010

O primeiro aniversário

Era o cantinho onde fumava. Uma cadeira de verga com duas almofadas. A cadeira viera já de outra casa e de outra divisão acabara ali na varanda ao pé da porta do quarto. Junto a ela uma mesa pequenina. Um cinzeiro, uma moldura com uma fotografia dela , um suporte de incenso e um móvelzito de madeira pintado duma cor antiga a fingir ser armário. Com a porta semiaberta podia ouvir a música do cd que deixava a tocar de acordo com a vontade do momento.
Acendia o cigarro, deixava-se ficar a olhar varanda fora. Olhava quem passava ou então ficava só presa ao que a rodeava. Em frente tinha um armário com livros. Lia as lombadas uma a uma e de vez em quando parava e pensava nas histórias que cabiam em cada uma. Aninhava-se dentro delas. Ausentava-se da vida que se espreguiçava lá fora até que o cigarro acabava. Às vezes deixava-se ficar a ouvir a música até que o cd acabasse. Sabia-lhe bem aquele espaço só dela. Podia até fumar mais um cigarro ou então agarrar um livro e ler.

Foi aqui deixando segredos e memórias. As capas dos livros tomaram a cor do tempo e as almofadas esqueceram-se da cor que, quando novas, tiveram. A verga da cadeira estalou aqui e ali mas, era o canto a que voltava sempre que queria estar sozinha.

Foi quando a mesa pequenina que sempre fora frágil, um dia, num gesto descuidado perdeu uma das pernas que o movelzinho caiu ao chão e abriu as portas pequeninas de forma descarada. Saltou de lá de dentro uma moldura que parou nos pés da mãe virada para cima. Protegida da luz do tempo mostrava inalterada uma fotografia que a mãe logo apanhou. Mas sou eu e o teu pai!

Tinham-se divorciado ainda ela era criança. Ela guardara aquela fotografia que um dia encontrara por acaso. Durante anos estivera preservada no seu cantinho, num lugar secreto. Era uma fotografia dum tempo a que ela ainda não pertencia. A fotografia do primeiro aniversário.
O aniversário dum tempo ainda fresco e por isso feliz.
Inocente e verde, como os tempos serôdios o são.
Dois sorrisos bailavam nos rostos que só as fotografias antigas conservam.
Tudo o mais se foi. Assim como as histórias que só nas memórias que se fecharam para novos presentes.

sábado, 9 de outubro de 2010

memória agridoce


 


recordo os cheiros.
alinhados
como  os dias 
no parapeito do tempo. 
as cores das estações a sucederem-se
com o gosto que ainda lhes
saboreio.
retrato da memória que
em mim
vive.
regresso a um tempo
agridoce que não se deixou
ficar.
vive para além de tudo isto.
 de mim, das coisas,
de ti.
uma compota
eterna
a deliciar-me os sentidos.
dissolvo-a

de

va

gar

a absorver
cada coisa
que agora deposito
com cuidado
num espaço a que chamo
meu.

afinal sou também feito do que já
fui.

quarta-feira, 29 de setembro de 2010

A porta



A porta estava encostada. Preguiçosamente encostada. Assim como se não tivesse havido o balanço ou o tempo que tão pouco seria para a deixar no trinco ali já à espera.
Um gesto só e a penumbra abria-se à luz que vinha da rua deixando a sombra esticar-se ainda antes dela ter entrado. Uma música vinda duma divisão qualquer anunciava a presença dalguém. Entrou e espreitou cuidadosamente, pedaço a pedaço, cada canto daquele corredor. Perseguiu o som que cada vez se ouvia mais nitidamente. Porta atrás de porta. Sentiu o cheiro de tabaco no ar misturado com o de café acabado de fazer. Ah, como lhe apetecia um café! E sentar-se... descalçar os sapatos, esticar as pernas... Poisou o saco grande que lhe fazia doer as costas. Foi quando se levantou que o viu. Estava a olhar para ela.
Demoraste, disse-lhe.
Esperavas-me? perguntou-lhe.
Porque julgas que a porta só estava encostada? Sempre espero alguém. Vem.
Abriu-lhe a porta duma pequena sala. A música ouvia-se claramente. Na mesa duas chávenas, um bule com café acabado de fazer.

Mais tarde a um canto dois pares de sapatos. Na mesa um cinzeiro cheio, um bule vazio, duas chávenas sujas com borras de café onde sinas foram lidas. Uma música no ar onde as penumbras anoiteceram e se deitou o cansaço.

A meio da noite ele levantou-se e em bicos de pés foi fechar a porta devagarinho, sem fazer barulho, para não a acordar. Só no trinco.

Ela deixou-se ficar. Ele não voltou a esperar.

quarta-feira, 15 de setembro de 2010

Aparentemente


Julgo-me sozinha e estão comigo todos quantos conheci. Nunca me abandonaram. Minha memória inteira alojou-os para sempre em cada pedaço de mim. E sentam-se comigo na mesma mesa e deitam-se na minha cama.
Só no afago e na ternura a ausência se faz presente. Então estremeço e tenho frio mesmo que o rádio me diga que está calor.
Lá fora o tempo passa. Cá dentro também. Numa cadência diferente.
Porque quando abro as janelas a surpresa do que vejo pasma-me. Sempre. Como se tudo fosse novo. E recomeço.
Novas pessoas e memórias, novos gestos e canticos se juntam ao tempo que já passei. Encho de novo a minha casa até agora aparentemente vazia.
Talvez haja afago e ternura que dure por um tempo que se faça Verão.
Talvez seja agora Inverno, não importa.
Há sempre um tempo de fechar as janelas e de guardar o que há para guardar.
Uma casa nunca estará vazia. Só aparentemente.

domingo, 12 de setembro de 2010

Só isto e só desta forma


não me dês nada
que não queiras.
nem promessas que não possas
cumprir.

não te peço nada.
porque nada de ti quero.
nem espero.

não julgues que se por um dia
tocaste o meu caminho
vou esperar que o faças
para sempre
tocando.
ou que se por acaso a minha voz
para ti,
 foi um dia sossego,
será a nota que,
eternamente,
disparará a calma na tua alma
que o anseia...

porque há momentos que serão sempre só isso.
pequenos, grandiosos momentos.
e devemos vivê-los
naquela eternidade que cabe na palma
da mão duma criança.

só isso e só desta forma.

sábado, 11 de setembro de 2010

Haja um regaço!

Estarão as respostas no reverso das lágrimas que te enchem o pranto?

Se assim for deixa que caiam. No meu regaço tas ampararei. Deixarei que aí as descosas e do seu avesso retires os segredos que a tua a alma anseia.
Depois repousa esses teus olhos cansados e alumia a escuridão que agora os envolve. Aqui neste meu peito, onde já moras.

Amanhã, será o dia das lágrimas sorrirem. Em todos os rostos, tocados por ti.
Que percebeste enfim que todos os prantos são filhos dum mesmo rio onde todos os mistérios navegam e onde todos se desvendam.
Haja um regaço e vontade de navegar!

segunda-feira, 30 de agosto de 2010

Sedução

Subiu-lhe a saia devagarinho disfarçando a pressa revelada no olhar. Um dedo apenas a puxá-la, os outros acariciavam levemente as coxas que agora mostravam uma cor que o sol pintara ao seu jeito. Ela afastou-lhe a mão com uma palmada e compôs a saia meneando a anca discretamente.
Na sua direcção o homem que há pouco a deixara entregava-lhe um copo com uma bebida de cor avermelhada decorada com umas folhas verdes de hortelã e um sorriso. Que ela devolveu a encimar um rubor que não teve tempo de esconder.
Ele deu meia volta deixando a sua mão passar duma forma quase casual pelo rabo bem delineado que ela lhe oferecia ao desejo.
O olhar que, de lado, ela lhe atirou poderia tê-lo matado se tivesse esse poder.
A seu lado uma testemunha inocente dava uma gargalhada puxava-a para si dando-lhe um beijo na face. Deixou-se agarrar. Retribuiu o beijo.

sábado, 14 de agosto de 2010

quinta-feira, 12 de agosto de 2010

O destino suspenso

Quase que adiara a ida. O medo do desconhecido e a vontade de o manter assim quase a fizeram deixar de ir. Acabaram-se-lhe as desculpas e foi.
Esperou por muito tempo. Ficou a observar quem chegava. Curiosa, sem impaciência. Casais mudos que se limitavam a olhar o relógio de vez em quando como se tivessem esgotado todas as palavras entre eles. Nem um gesto, um olhar... só a proximidade os denunciava.
Uma a uma as mulheres iam entrando, sózinhas. Umas saíam quase logo a seguir e dirigiam-se rápidamente à saida como se libertassem dum fardo. Outras demoravam mais tempo e traziam alguns papeis que tinham ainda de carimbar. Não falavam. Dirigiam-se a quem as acompanhava e saíam de cara fechada sem uma palavra.
Nessa altura ainda não percebera muito bem porque estava ali. Tinha feito exames de rotina e estava tudo bem. Um telefonema do seu médico alertou-a para um problema sem importância que seria resolvido por um médico da especialidade. Nada de grave. Há três meses atrás. Agora estava ali.
Chegou a sua vez. Entrou. Falou de si a uma médica que nunca tinha visto. Quando perguntou o que se passava com ela já tinham tirado um pedacinho das suas entranhas.
Tranquilizaram-na. Nada de grave. Vai ver que está tudo bem, que trataremos tudo a tempo.
Foi quando ela percebeu que tinha o destino suspenso. Pelo tempo das respostas daquele pedacinho que lhe tinham tirado. Mesmo assim , sorriu.
Levou consigo os papeis e saiu dali. Para cuidar de si.

Nessa noite, como não fazia há muito tempo, arranjou-se, vestiu o vestido mais elegante que tinha e saiu. Sózinha. Não precisou de ninguem para o fazer. Sentiu-se a mulher mais bonita por onde andou. A mais completa.
Iria sentir-se muito mais vezes assim. Prometeu-o a ela mesmo.
Nessa mesma noite.

quarta-feira, 11 de agosto de 2010

O ritual

Plantou-lhe duas sementes no ventre.
A primeira deu flor e cresceu na esperança da outra.
Foi quando a agarrou nos braços e lhe fechou os olhos que deixou de ser esperança a semente que dentro dela germinava. E a vida num rodopio a perder o sentido.
Murchou a flor que com ela plantara e um dia viu-se sem a sua memória.
Sózinho , não mais fecundaria nenhum ventre, não desejaria mais nada.
Procurava no vazio encontros fortuitos com uma felicidade fugidia. Tentava capturá-la aí. Um dia já sem forças, partiu. Houve quem dissesse que de dor.

A mãe reservar-lhe-ia sempre lugar à mesa, mesmo que os lugares faltassem, para ele haveria sempre. E o seu prato predilecto.
Mas era quando todos saíam, no silêncio que então ficava, que ela se sentava no lugar em frente ao dele e esperava.
E ás vezes ele vinha. Esticava os braços por cima da mesa. Ela também. Tocava nas mãos dele. Estás mais magro. Ele sorria. Aquele sorriso aquecia-a por dentro, dava-lhe forças para mais uns dias. Sentia-o feliz. Ficavam ali um bocado. Depois deixava-o ir.
Não saía de casa. Não dizia a ninguém. Não podia perder estes momentos. Era o que lhe restava dele. Este ritual dava-lhe vida. Tinha a certeza.

quarta-feira, 4 de agosto de 2010

Gruta


Rasgada por dentro, calaste teus gritos, nas lágrimas que ainda hoje te vejo chorar.
Tanta lágrima vertida fez de ti a mais bela das que conheço. E nem o manto que te cobre, pode calar ao mundo a beleza que esconde.

Nascente

Um sabor a sal prende-se na língua ao percorrer-lhe o ventre.
Cresce-lhe a sede que sacia na nascente onde todos os rios nascem.

terça-feira, 3 de agosto de 2010

Dirão

Escrevo o meu nome na tua pele. Com água.
Letras invisiveis. Aos olhos. Só.
Estão-te tatuadas na alma, nos sentidos.

Dirão que ao secar se desvanecerão das memórias. Que nada restará deste momento, que tudo isto é uma ilusão, meu amor.
Pois, que seja. Mas enquanto não for, vivamos este momento como se fosse eterno. Assim como o é o fluir das águas com que escrevo aqui o meu nome, com amor.

Olhou-a


Olhou-a nos olhos como se de água fossem.
Procurou-a dentro deles.
Enlaçou-a num só gesto e da sua boca provou o desejo.
Navegou então num corpo feito mar, feito onda...
e ele foi barco,
os braços remos
e de proa em riste
foi mar dentro.

E um grito fez-se eco pela noite.

Um dia

Um dia adormeci em teus braços. Embalado em teu silêncio.
Do teu regaço fiz canoa e dentro de ti abri caminhos .
Colonizei cada pedaço teu e em teu coração deixei meu estandarte.
Quando meu sono acabou, também, já eu te pertencia.

E agora só quero, para sempre, adormecer assim.

Rouco


Rouco sussurro-te ainda as velhas palavras.
Não me cansarei de fazê-lo.
Têm a idade dos tempos que fizeram de ti Mulher,
raiz na terra plantada por gota qual sémen, regada.
Vida a fazer-se, desejo a cumprir-se.

Quero-te!

segunda-feira, 2 de agosto de 2010

Eis-me


Avanço devagar por ti adentro.
Sinto-te humida.
Recuo um pouco.
Dentro de ti sinto vida. Vida que anseio descobrir.
Murmurios que me chamam e impelem a voltar.
Avanço de novo.
Entre avanços e recuos sinto o teu apelo.
Mergulho então em ti e rejubilo.

Eis-me onde a vida se cumpre no desenrolar dos séculos.

Agora


A príncipio escondias-te de mim. Disfarçavas-te vestindo as roupas rudes da serra que era a tua casa. Deixavas que falassem de ti sem te conhecerem. Um dia abriste-te inteira. Deixaste que os meus raios te envolvessem e se mirassem nos espelhos que dentro de ti se passeiam. Enleado em teus recantos descobri tanta magia que há em ti.

Agora esperas-me em todas as madrugadas. Em todas te entregas e em todas te possuo.

domingo, 1 de agosto de 2010

Espanto-me


Espanto-me no gesto que te surpreende. De mansinho.
Abres-te de encantos que descubro só em ti. Para mim.
Num segredo que guardamos entre nós.
Navego agora nesses mares que em ti embalas e de viagem em viagem acosto em continentes por desbravar.
E o meu desejo é habitar-te!

Há muito tempo...

Há muito tempo que as lágrimas não lhe corriam face abaixo. E agora corriam sem parar. Toldavam-lhe a vista e aclaravam-lhe o entendimento.
Escondera de si o que agora não podia fazer mais. Na sua frente tudo se mostrava como realmente era. E era com isso que tinha de viver.
Percebia agora porque tinha perdido a pouco e pouco a luz, a vida e a garra que tanto lhe era característica. Anulara-se ao negar-se o que sentia.
Deixara de sentir.
A pouco e pouco apagaram-se do seu dicionário as palavras que temia dizer. Para não sentir. E assim perderam significado numa esquina qualquer da sua vida.

Agora ouvia-o com um sorriso que se ia apagando debaixo das lágrimas que lentamente, uma a uma lhe desvendavam o segredo de tanta alienação. Começava de novo a sentir.
E pedia forças ( há tanto tempo que não pedia nada!) para enfrentar a luz de tanto entendimento.

O casulo estava destruído. Não era uma borboleta feliz que de lá saía. Olhar o mundo desta maneira era ainda cedo. Era talvez já tarde. Um casulo em tempo algum resolve coisa alguma. E as borboletas não vivem por muito tempo sejam elas as mais belas ou as mais fortes.

Fossem as lágrimas o elixir da força já que foram a chave da verdade escondida dentro dum peito adormecido...

sexta-feira, 30 de julho de 2010

Em memória


Às vezes desaparecia. Por largos períodos de tempo.
E de repente sem qualquer aviso estava por todo o lado, a toda a hora.

Da última vez que voltara, estava mais magro. Usava a barba por desfazer e dizia-se cansado. Parecia assim mesmo. Falava muito e depressa como se tivesse medo que se lhe acabasse o tempo antes das palavras que tinha para dizer. Cerveja atrás de cerveja molhavam-lhe a boca onde no canto nasciam pequenos pedaços de espuma branca.
Parecia não ter fim tanto que tinha por dizer. Não só aquilo que já vivera mas tudo aquilo que tinha para fazer. E as pessoas... Tantas e tanta coisa para começar e acabar!

Ninguém lhe entendia a urgência, mas ouviam-no. E de espaço a espaço acenavam-lhe um sim que lhe permitia continuar com a mesma energia. Sem perceberem bem porquê entendiam que precisavam alimentar aquela fogueira que sentiam acesa dentro dele. Nunca lhe tinham visto tal energia e tanto cansaço. Como se em tal ambiguidade estivesse suportada a sua vida.

Ainda assim sem quê nem para quê deixavamos de o ver por um dia ou dois. Que precisava de fazer umas coisas urgentes, voltaria. Já ninguém estranhava este comportamento. Nunca se faziam perguntas. Estranhavamos até que às vezes se justificasse.

Não lhe conhecíamos família mas sabíamos ter tido mulher e uma filha. Descobriamos agora no que nos dizia o que lhes tinha acontecido. Ajudou-nos a perceber porque fugira da vida durante tanto tempo. E tudo o que podiamos fazer era ouvi-lo.

Um dia não voltou mais.
Soubemo-lo quando foi notícia de jornal.
"Homem, entrega-se à polícia após ter morto violador não condenado de mulher e filha falecidas. Acaba por morrer devido a estado adiantado de doença."

domingo, 18 de julho de 2010

O meu país?

O meu país? É a vida.
Cala-se e estende o olhar em frente para depois o baixar.

Nascera longe dali. Num sítio de que lembrava o nome porque constava dos registos. Cedo ainda, sem ter tempo de medir o espaço que a acolhera, partiu. Foi o inicio de muitas chegadas e partidas que lhe moldaram a forma de estar.
Onde chegava , bastavam-lhe pequenas coisas para daí se sentir. Uma pedra, uma flor já
morta, uma folha seca com cores de outono, uma pena perdida num voo qualquer.
Era a bagagem que carregava para lugares que sendo estranhos se tornavam familiares. Com pequenas coisas.
E assim abraçava o mundo, despida de quanto lhe era dispensável.


Tropeçava agora em meia duzia de coisas que armazenara numa vida passada em alguns lugares dispersos. Uma vida!

Não, não escolho lugar algum, encontro-me em todos eles. Só preciso de respirar, das memórias a fazerem-se futuro. Trago comigo todos os sítios que fizeram de mim o que sou.
Este país enorme a que pertenço. Esta vida que faço minha.

Baixa-se e agarrando a bagagem, prossegue caminho. Leve.

sexta-feira, 16 de julho de 2010

Recados

Era a olhar-te que queria dizer-te tudo o que me vai na alma. Assim, como se estivesse cega, tacteio-te as emoções. Adivinho-as rebuscando na memória o tempo em que estavas aqui.
Digo-te pouco a pouco como se fossem recados. Curtos, directos, sem rodeios. Tenho a certeza que os guardarás nalgum lugar dentro de ti. Para num dia qualquer os desembrulhares devagarinho, não se rasguem eles pelos vincos que o tempo tornou mais frágeis.

Queria tanto que não o deixasses para tarde! Que o fizesses num tempo em que ainda sentisses a minha voz nos teus ouvidos.

Temo que o bolor do tempo os cubra e percas os traços das palavras que neles desenhei.
Então, tudo será em vão.

E mesmo assim teimo: tu, surdo e eu cega.

quinta-feira, 15 de julho de 2010

Não

Não quero fazer-te perguntas para saber de ti. Prefiro estar atenta aos segredos que desvendas quando te abres para mim.
Não faço dos meus braços enlaçados no teu corpo, grades de alguma prisão. Amparo e conforto é quanto querem ser.
Não te beijo para calar as palavras que dentro de ti ecoam. Quero sorvê-las e guardá-las dentro de mim.
Não te olho para saber dos teus passos. Faço-o para te esculpir na minha memória.
Não te estendo as mãos para te guiar, mas sim, para caminharmos juntos.

E se nada quiseres de mim, di-lo com as palavras claras que me ouves. Não as deixes brincar e perder-se em bailados que só nos entontecem.

segunda-feira, 12 de julho de 2010

História simples

Martelavam ainda na sua cabeça as palavras que lhe ouvira dizer enquanto caminhava apressada levando quase a reboque o pequenino. Este quase parecia voar de tão mal pousar os pés. Mãe, espera, pára. Pedia-lhe ele. E ela acelerava ainda mais o passo como se assim fugisse do que fora dito.
Foram palavras que nem punhos que lhe ouvira. Do soco amparado a custo ficava-lhe o sabor amargo de palavras por dizer. Palavras que lhe ardiam na garganta e se batiam no peito onde o coração desalmado exprimia a sua revolta. Nem as lágrimas vertidas apagavam a secura que lhe sugava a voz.
Era correr que queria. Num outro qualquer lado, doutra qualquer forma, estar.
E ali, agarrada a uma ancora que não a deixava ausentar-se, afunda-se então no soluço que lhe destrava a voz. É num grito que se deixa então cair.
Dois braços ainda pequenos abraçam-na. Depois uma mão afasta ligeiramente o cabelo da testa dela à procura dos olhos marejados. São uns olhos grandes, cheios de mundo para viver, que a fitam á procura de respostas.
É então que, espelhada nos olhos que a miram descobre a força imensa que ainda tem. Pega-lhe no rosto pequenino e deixa sair a pouco e pouco as palavras de conforto que também precisava de ouvir. Amo-te tanto, meu bébé lindo!
Quem os vê de cócoras, ao longe, pensa que foi a mãe que amparou o filho numa queda qualquer. Não adivinha, no menino, a força dos gestos e do olhar que fizeram a mãe levantar-se.

quarta-feira, 30 de junho de 2010

Sem perceber porquê



Lembrava-lhe o pescoço esguio onde pousava um rosto iluminado por dois olhos grandes na ânsia de ver mundo.
Lembrava-lhe a mansidão nos gestos que desenhavam as mãos compridas de dedos finos.
Não lhe saía dos ouvidos a voz que lhe dera de volta a a paz.

E quando se despedia embrulhava-se nas memórias que não lhe esqueciam. E nunca havia longe ou tarde. Porque mesmo quando partia, ficava.
Todas as despedidas anunciavam regressos feitos das lembranças guardadas num peito que as abraçava.

Agora encosta os lábios na curva que se faz ali junto ao queixo. Como sempre o fizera.
Só lhe falta a luz que os olhos fechados teimam em esconder. E nas mãos juntas sobre o peito calam-se gestos que antes se fizeram.
Dentro dele ecoa a voz que os seus lábios para sempre fechados prendem.

Lavam-lhe a face lágrimas que deixa cair livremente.
E sem perceber porquê, o que sente é paz.

domingo, 20 de junho de 2010

Mentiram-te



Mentiram-te quando disseram que te procuro.
Não procuro ninguém. Nunca o faço.
Só a mim me quero encontrar.

Dir-me-ás que é em ti que o faço.

Responder-te-ei que em tudo e todos me espalho e reconstruo.
Nunca serei inteira em ninguém se a nada mais pertencer.

Sou do ar que respiras e do vento que te afaga. Sou da terra que te embala e da noite que te traz os sonhos. Trago-te a luz das estrelas e o calor do sol que te aquece a pele. E não sou coisa nenhuma por não estar em lado algum.

Não te procuro, não. Não me procures também.
De tanto e tanta coisa ser nada de mim encontrarás.

quinta-feira, 10 de junho de 2010

Não há longe na distância.



não há longe na distância, meu amor.

e são as tuas palavras
tecidas e em manto estendidas,
nas noites longas,
que se enrolam em mim
e te fazem presente.

não há longe na distância meu amor.

a não ser que plantes silêncios
como cieiro
nos meus lábios
habituados aos teus...

não há longe na distância, meu amor.

quinta-feira, 3 de junho de 2010

Feitiços


Há feitiços que no decorrer do tempo se desvanecem porque nem isso são. São meros enganos que nascem do desejo de se fazerem reais. Valem pelo tempo que duram e merecem ser vividos. Nunca lamentados Perdurará o que se quiser. Nada mais poderá ser pedido. A ninguém. A coisa nenhuma.
A tudo deve ser dada a intensidade maior. O coração inteiro. E arrependimento nenhum.
Todas as lágrimas deverão encher os olhos. Só assim valerá a pena vertê-las.
Rios navegados pelas histórias que não esquecemos nunca.

quarta-feira, 2 de junho de 2010

Mais ninguem

Tinha uns olhos grandes que falavam. E diziam tantas coisas.
Transparentes como as lágrimas que neles se aninhavam para depois se soltarem em fios de prata.
Ficavam calados e bastava-lhes o silêncio. O silêncio e o trocar de olhares. Como se trocassem palavras.
Tanto mar por navegar naquele oceano enrodilhado onde só ele podia encontrar a ponta.
Falavam a mesma língua nos silêncios que plantavam entre si. E braços como remos faziam a caminhada com a leveza dum beijo soprado noite dentro.
Um rasto de sal, nada mais. Era tudo quanto restava das conversas partilhadas. Testemunho mudo e cego. E só ele para o seguir. Mais ninguém podia partilhar tais segredos.

terça-feira, 1 de junho de 2010

Nada mais


E à noite embrulhava-se num abraço esperando que todas as coisas retomassem o lugar.

Sabia que no longe das memórias se apagavam a pouco e pouco os restos da saudade que lhe dançavam no peito. Agora podia viajar mais serenamente.
Sempre detestara a força de tal forma de sentir. Olhando o passado na ânsia do mesmo futuro. Sentia-se agrilhoada e não queria tal prisão.

Era o sono que aguardava num desejo a fazer-se cada vez maior que lhe vestia então a paz.
Num mundo paralelo sonhava coisas que sabia desfazerem-se ao acordar. E abandonava-se. Ali nem memórias nem saudade existiam. E se a espreitassem teriam o tempo dum sono. Nada mais.

Nada mais.

sexta-feira, 28 de maio de 2010

A resposta



Ele sentou-se à frente dela com as certezas deitadas em cima da mesa. Olhava-a à espera da confirmação de que precisava. Lembrou os sinais, as dúvidas e questões da batalha travada entre a razão e o coração. E tudo lhe parecia impossível. E tudo lhe parecia certo.
A ela, com a admiração suspensa, restava-lhe escutá-lo. Saborear cada palavra que afinal também navegava dentro dela. Já há algum tempo.

A resposta que lhe deu veio num tocar de mãos que se fez abraço.
Brindaram então à descoberta que deles emergia e fizeram-se ao caminho ansiado.

domingo, 23 de maio de 2010

O tempo


Era chegado o tempo de tudo voltar. Mesmo as coisas de que ela não gostava e sempre apareciam. Mas de forma diferente. Uma saudade insidiosa instalava-se de mansinho. A saudade de que ela fugia e se recusava a viver.

Sentada no café do costumo ficava a ver as pessoas passarem. Observava com minúcia todos os movimentos de quem via. Punha a imaginar-se histórias e divagava esquecendo-se de si. A seu lado sentou-se alguém que adivinhou ao sentir-se observada. Podia imaginar a vontade que ele tinha de a ver melhor. Tal como ela fazia com toda a gente. Desviou propositadamente o olhar.

À memória veio-lhe o dia em que se sentara em animada conversa no mesmo espaço com outro homem. O mesmo que agora viajava dentro dela e se insinuava a cada momento com a vontade de rever.
Desejou então que o tempo voltasse ao tempo em que todos os minutos eram eternos.
E o momento que agora lembrava fosse presente e futuro. Como só nas memórias acontecia.

terça-feira, 18 de maio de 2010

Pudera

Começo a sentir-te a falta e ainda aqui estás.
Devoro os últimos instantes com a sofreguidão que tenho de ti.

Sabes-me a maresia.

Pudera eu navegar para sempre em ti!

quinta-feira, 13 de maio de 2010

Um dia...

A cabeça doía-lhe como nunca. Como das vezes que a saudade a assaltava. Desenhando cicatrizes nas memórias do que estaria para vir.

E tudo então seria diferente.
Não percorreria os mesmos caminhos da mesma maneira.

Mas eles estavam lá para ser feitos. O dia a dia a fazer-se rota para um futuro que só nos sonhos dela existiam.
Já era tempo de saber o que estava para além das curvas do tempo. Sem dores.

E a dor a gritar-lhe aos ouvidos. Com tudo a acontecer de novo.
Mal refeitas as coisas em tudo quanto ficou para trás.

Caminhar era preciso. Um dia a dor desapareceria. As lembranças viriam despidas de saudade. E os sonhos seriam só sonhos a concretizar-se um dia qualquer. Não importaria quando.
A esperança fazer-se-ia!

domingo, 9 de maio de 2010

No abraço

Já fazia algum tempo desde que o sol lhe lambera a cara. Parecia estar calmo, mais descansado até. Na verdade acomodara-se melhor quando sentiu o calor que vinha daquela luz. Voltara-se para o outro lado deixando-a livre do abraço que a mantivera junto a ele toda a noite.

Hesitou em levantar-se com medo de o despertar. Deixou-se ficar mais um tempo. Foi a campainha da porta que a fez levantar. Ainda ensonada, vestiu um robe e foi ver quem era antes que o acordassem com mais toques. Na porta, não estava ninguém. Brincadeiras de miúdos, pensou.

Quando voltou ao quarto não o viu deitado. Ouviu a água do chuveiro a correr.
Deixou-o estar. Ocupou a outra casa de banho e arranjou-se rapidamente. Queria estar bem quando se encontrassem.

Voltou ao quarto em silêncio. Queria surpreendê-lo. Não o viu de imediato mas um embrulho em cima da cama desfeita despertou-lhe a atenção. Era um embrulho pequenino. Perguntou-se de onde teria ele vindo e aproximou-se. Foi quando sentiu os braços dele à sua volta. Voltou-se para ele com ar interrogativo. Ele sorriu-lhe. Sim, meu amor, é o que pensas. É tempo de te pedir que continues comigo para sempre.
Duas lágrimas assomaram aos seus olhos. De felicidade.
E foi no abraço que então fizeram que o amor se celebrou.

sexta-feira, 7 de maio de 2010

Não haveria chuva

Estava um dia como o de hoje. Cinzento e triste. A chuva caía miúda e preguiçosa no chão.
Tinha-lhe prometido que sairia. Dessa vez não ficaria em casa a remoer coisas antigas. Mas o tempo em lágrimas arrastou-a para um canto de sua casa. Precisava de sol, de dias alegres e com cor. Esteve assim durante horas. Depois começou a andar de um lado para o outro na casa à procura do que fazer para se alhear de si. Quando o telefone tocou estava perdida a arrumar gavetas e a dizer mal de si por tanta tralha ter juntado. Procurou-o na pilha de coisas que tinha despejado e atendeu. Era ele. Porque não saíste, que desculpa arranjaste desta vez?
Debateu-se em explicações que ele não aceitava. Vou-te aí buscar. Arranja-te. Desligou o telefone e deixou-a a olhar para a ilha que tinha criado à sua volta. Preguiçosamente, levantou-se. Deixaria tudo para arrumar quando voltasse. Teria de se vestir. Meteu-se debaixo do chuveiro e deixou a água correr tépida pelo seu corpo. Pensou no que teria de vestir enquanto se secava e acabou por usar a mesma roupa da véspera. Não se maquilhou como costumava fazer e pôs só um perfume.
Ele chegou entretanto. Estás pálida, miúda. Que se passa contigo? Vem daí.
Levou-a para longe dali. A chuva continuava a cair da mesma forma. Dentro do carro uma música qualquer iluminava os silêncios.
Onde me levas? perguntou a medo. Um gesto de calma e um olhar sereno foi a resposta que obteve. Deixou-se ir. Confiava nele, sempre o fizera. Era o seu porto de abrigo e com ele vencia todas as tempestades.
Dali já via o mar. E como ela gostava do mar! Lembrou-se que tinha sido ali que ele lhe tinha sido apresentado por uma amiga comum. Há muito que já não ia ali. Sentiu o coração bater mais forte. Ele olhou-a de soslaio e percebeu nela a emoção. Continuaram calados até que ele parou enfim o carro. Já era tarde. O dia começava a fazer-se outro e a chuva deixara de cair.
Vamos andar? Saíram do carro e dirigiram-se à praia de mãos dadas. Descalçaram-se e deixaram na areia molhada as pegadas à medida que iam avançando. Em frente o mar como testemunha.
Ele agarrou-lhe ambas as mãos e -la olhar para si. Não quero deixar-te mais tempo sozinha, não quero ver-te mais assim. Vem viver comigo!
Ela baixou os olhos e deixou as lágrimas caírem. Um abraço forte -la poisar a a cabeça no ombro dele. Soluçava quando ele a apertou. Sim, meu amor, liberta-te de tanta tristeza. É tempo de começares a sorrir.
A pouco e pouco ela acalmou-se. Pegou-lhe então no rosto e deixou-lhe um beijo nos lábios.
Ela afastou-se um pouco e de olhos virados para o mar sussurrou-lhe, é aqui que a vou deixar. aqui onde te encontrei. Prometo. Abraçou-o de novo. Foi ao voltar a casa entre tanta coisa que deixara por arrumar que selaram a promessa.
Nessa noite o sol sorriu , o arco-íris coloriu o espaço e no coração deles a alegria fez-se presente.
Não haveria chuva que os desencantasse.

terça-feira, 4 de maio de 2010

De ti

Chego a ti como quem volta a casa e em ti amaro suavemente. De todas as vezes. Sempre como da primeira. Reconheço cada canto teu e sorvo-o com a sofreguidão que têm as memórias de ti. É assim que viajas comigo para onde quer que vá. Nunca te deixo mesmo deixando.

De ti, só quero regressos, mesmo que nunca partas e um matar de saudades ainda que o tempo não as faça sentir.

segunda-feira, 3 de maio de 2010

Diz-me

Diz-me meu amor o que fazemos dos nossos beijos, onde os podemos guardar?

Na memória que deles tenho sobram-me imprecisões. Restam fantasmas que se dissipam nas sombras do esquecimento.

Lembro-me de ter vontade deles e de como eles se faziam noutros beijos.
Carícias a beberem-se sôfregas nos teus lábios. Como se não houvesse mais tempo e todos eles fossem os últimos. Num chegar que se fazia despedida ainda ali.

E agora, que fazemos deles se tanto nos apetecem? Para estarem vivos nas memórias que a ausência nos obriga a fazer. Que sítio mágico os pode deixar pousar em nossos lábios quando a vontade se acende?

Meu amor, tanto longe faz-nos mal.
No deserto árido que se ergue entre nós não se mata a sede que tenho dos teus beijos.
O vento Suão leva-os para distâncias que não alcançamos e morremos um pouco no desejo de os trocar.

Embarco então nas tempestades que tanta saudade me traz e vou à tua procura. Haverá um país qualquer em que o passado se faz presente e os nossos beijos são sempre cedo.

Que pressa...

que pressa tens tu, que nem para mim olhas ? para onde correm os teus pensamentos?
e segues o teu caminho sem dar respostas.
queres que a noite te abrace e devolva ao sítio onde os sonhos se fabricam. nesse outro mundo em que viajas mais devagar sabes que tudo só dura o tempo dum sono. é quanto te chega. eu sei-o.
tudo o mais te devora. sentes-te abafado e não consegues respirar. nem forças tens para o caminho que fazes veloz. é a vontade de te ausentares que te dá o impeto para tal.
e é na música da noite que te deixas embalar. mesmo que os sonhos te perturbem, sabes dizimá-los. basta despertar, estender os braços e perceber que alguém está a teu lado. afinal. um gesto que transforma tanto medo que há em ti.
um dia, se não paráres para me olhar, irás deixar de me ver. e sentir também.
estarei num sítio que nem os sonhos alcançam. e num pesadelo qualquer sentirás a minha falta.

segunda-feira, 26 de abril de 2010

Quando...

Conheço-lhe o sabor também. O sabor amargo da ausência.

E a vontade enorme de não o sentir. De não mais sentir.
Um ardor no peito sobe até à garganta onde não nascem mais palavras. Aí encerradas num nó que não se desata, sufocam emudecidas.


E não sentir era quanto queria. Sobretudo não desejar. Nunca mais.


Só a semente que faz brotar em mim o desejo o pode fazer cumprir. Ao ser colhido.
Abandonado em secura afunda as raízes peito dentro à procura de alívio nalgum oásis aí plantado.


É no toque suave das tuas mãos que se apazigua E na água que bebo de teus lábios que se sacia.


Não estás. E faz-se dor no grito que embalo para não se ouvir.


Conhecer-te é meu martírio.
Saber que existes e não te tenho tornou-se o meu destino.


Quando o meu desejo for flor, cobrir-te-ei de pétalas, meu amor!

domingo, 25 de abril de 2010

Daquela vez

Daquela vez era só mais uma vez. Não podia ser doutra forma.
E quando ela se afastou de novo, tudo ficou diferente. Não fora mais uma vez mas sim o reacender de velhas memórias e acordar dum sentimento que julgava adormecido. E tudo voltava ao principio.
Com ele era tudo fácil. Como se cada um fosse parte do outro.Um a pergunta, outro a resposta.
Os gestos trocados faziam parte duma dança que coreografavam a dois, em sintonia. O desejo, a melodia que se acendia na troca dum olhar. E uma sofreguidão imensa a fazer-se leito onde corria um rio com ânsias de mar.
Depois falavam de coisas banais e afastavam de si o que os juntava. Faziam-se fortes e escondiam no interior em sobressalto a vontade de permanecer assim por tempos que não eram do tamanho dos que tinham. Queriam-nos maiores e deixavam-nos sufocar num peito que ameaçava tempestade.
A realidade chamava-os e impedia-os de sonhar. De querer mais.
Despediam-se com o peito em brasa e nunca sabiam até quando.
Daquela vez doeu mais a partida. Cravava-se já no desejo a vontade de voltar.
De nunca partir.

quarta-feira, 21 de abril de 2010

Hoje

Há muito que não falo contigo e não é que não me façam falta as conversas de antes.
Deixei-me vaguear pelos sonhos doutros e abandonei-me a isso só. Dir-me-ás que assim fujo de mim. Que me afasto do que é verdadeiramente importante. Mas se o faço é por cansaço.
Neste estar sozinha que escolho viver sobram-me momentos e vontades de o não estar.
Distraio-me dessa contradição vendo pelos olhos e ouvindo pelos ouvidos doutros.
Esqueço-me de mim porque preciso. E tu sabes disso. Talvez assim nessa distância que crio veja mais do que sou. Talvez assim me encontre. Através de quem passa por mim.
Hoje falo-te com a urgência na ponta da vontade. Preciso de retomar ao que sou. Lembras-te tu do que eu era?
Sei... ainda não aprendi tudo o que havia para aprender. Pouco cresci desde o tempo que passou.
E a vida não espera. Acontece mesmo quando faço pausas. Está a acontecer. Agora.
Fico cada vez mais longe de mim... Era perto de ti que queria estar. Se para estar perto for preciso estar longe, estarei!
Sabes? Esta noite quando fechar os olhos quero ver-te.
Espera por mim, então, ao anoitecer.

domingo, 18 de abril de 2010

Sozinha

Ela, assim como ele, não era de pedir. Aceitava o que tinha e achava que nada mais devia querer.
Lembra-se da ultima vez que o convidou para estarem juntos, beberem um café, pôr a conversa em dia. Ouviu-lhe um não sem qualquer explicação. Não mais voltou a insistir.
Deixou que o silêncio se instalasse comodamente entre os dois. Rarearam as mensagens, acabaram-se os telefonemas.

Não é que tivesse saudades dessas coisas. O facto é que até lhe sabia bem esse afastamento. Achara sempre que ele quisera mais do que alguma vez tiveram. Ela não lho podia dar. Oferecia-lhe uma amizade que ele rejeitou. Um convívio saudável e sem obrigações. Ele imaginara outra coisa. Queria mais e sentira-se rejeitado. Afastou-se. Afastaram-se em direcções opostas.

Na verdade, pensava só como se perde, quando se vê um único propósito nas coisas. Sejam elas o que forem. Como quando procuramos chegar a algum sitio e com a pressa perdemos a beleza da caminhada. Chega-se onde se quer, é certo. Sem distracções mas mais pobres. Pelo caminho deixámos o que nunca viremos a descobrir. E não há forma de voltar atrás. Talvez nem haja tal desejo...

Olha à sua volta e observa as crianças que brincam na areia aproveitando conchas e paus que a maré trouxe. Constroem fortes e castelos e são os príncipes e princesas dum reino ali inventado.
E as ondas num vai e vem. Como a vida, pensa ela. Uns dias beija-nos os pés, outros atira-nos ao chão. Como o castelo que a onda agora engoliu. E a pequenada retoma todo o trabalho agora um pouco mais longe não vá o mar querer lambê-lo outra vez.

Retomou também ela a caminhada. Sabia-lhe bem andar sozinha à beira mar.
Sempre lhe soube bem andar sozinha. Parecia-lhe ver mais e melhor.

sábado, 17 de abril de 2010

Os sapatos

Aqueles sapatos magoavam-lhe os pés. Ficavam-lhe apertados e tinha uma vontade enorme de os descalçar. -lo sem dar nas vistas. Descalçou um após outro e deixou-os arrumados debaixo da mesa. Pôs-lhe os pés por cima. Relaxou um pouco. Quando tivesse que os calçar de novo preparar-se-ia para tal. Até lá os seus pés respiravam liberdade.
Tinha-os calçado de propósito para ele. Sabia como ele gostava dos sapatos de salto alto e bem fino. Queria agradar-lhe. Vestira-se de forma simples e discreta. Um vestido preto que já tinha anos no seu roupeiro. Felizmente não sofria muitas oscilações de peso e ele estava lá sempre pronto a ser vestido. Podia contar pelos dedos as vezes que o vestira mas sabia que ele nunca a deixara ficar mal. Uns caracóis rebeldes ladeavam-lhe a face e um brilho sedoso sobressaia deles quando a luz os tocava. Não usava maquilhagem. Nunca o soubera fazer.
Das suas mãos emergiam dedos finos e longos que não paravam. Ele agarrou-lhe a mão como se a quisesse impedir de viajar para longe. Nervosa? Não, sou sempre assim. Não paro quieta. Gosto de movimento. Vamos então andar um pouco? Não fiquemos por aqui. Disse lembrando-se dos sapatos abandonados debaixo da mesa.
Conversaram a tarde inteira de tudo e de coisa nenhuma. Trocaram sonhos e fantasias. Projectos e histórias do dia-a-dia.
Quando o sol dourou o horizonte ainda tinham muito para dizer. Uma aragem mais fresca levantou-se. Calaram-se por uns tempos. Ficaram a olhar quem passava sem saber como acabar.
Queriam que ainda fosse cedo porque as palavras ainda brotavam como flores na Primavera. Até no silêncio.
Um a um, calçou os sapatos que agora parecia servirem-lhe melhor. Sabia que iam ter de se levantar e despedir. -lo sem vontade. Prometeram voltar a ver-se.
Ele ficou a olhá-la enquanto ela se dirigia para o carro. Um salto do sapato prendeu na calçada e quase a desequilibrou. Não tinha reparado nos sapatos que ela levava. Só agora o fazia.

domingo, 11 de abril de 2010

A lágrima


O velho olhava o mar à procura das memórias que o tempo e a doença lhe roubaram. Fixava o olhar vazio num ponto distante e deixava-o aí amarrado como quem pesca e espera.

Atrás dele dois jovens presos no olhar um do outro. Ele deixa viajar a sua mão por dentro da blusa dela e pressente-lhe no mamilo a urgência de mais. Sôfregos procuram na boca um do outro o mar por onde querem navegar. As mãos como remos avançam corpo dentro e conquistam o que há para conquistar.

Quando o velho se vira, vê um casal abraçado como se fossem um só. Uma lágrima solta-se-lhe e rola pela sua face até ao canto do lábio. Sabe-lhe ao sal do seu mar.
São as lembranças que voltam e o seu barco entra mar dentro à força gigantesca dos braços que agora mal pode levantar. Vencidas as ondas, flutua agora quase sereno em direcção ao horizonte. Embora cansado, abate-se sobre ele o prazer de marejar.
Uma vez mais.

sábado, 10 de abril de 2010

Espanta espíritos

Pingavam-lhe das orelhas como espanta espiritos e entoavam preces que se lhes assemelhavam. Eram pequenas conchas que um dia apanhara junto aquele mar. Deixava os pés enterrarem-se suavemente na areia que a água salgada de vez em quando acariiciava. Agora tinha os pés pintalgados de areias finas que lhes davam um brilho peculiar. Abandonou-se a essas pequenas coisas e andou sem destino.
Ele seguia-a de longe. Conhecia-lhe as ausências e os silêncios prolongados. Eram uma fome que ela precisava saciar. De tempos a tempos. Num mundo que só a ela pertencia. De que só ela tinha a chave. Estaria ali para quando ela voltasse. Sabia que ela o faria.
A pouco e pouco as ondas ficaram grandes como só elas sabem ser. Falaram mais alto e acordaram-na finalmente. Deu uma corrida apressada mas não evitou ser apanhada por uma onda mais astuta. Acabou por cair. Procurou-o então em desespero.
Tinha tanto medo daquele mar que amava!
Foi no abraço apertado que se riu abertamente do susto que tinha apanhado. Um riso nervoso mas franco porque se sentia já protegida. Também ele era o seu espanta espíritos.

Fosse como fosse

Andava também por ali de máquina a tiracolo. Como todos os turistas. Tinha parado para se refrescar e notara a sua presença. Estava sozinha, sentada a uma mesa. Aproveitava todos os instantes para fazer fotografia. O seu olhar não parava quieto. Como se não o pudesse fazer. À sua frente a bebida permanecia inteira. Decidiu aproximar-se.
Surpreendeu-a enquanto ela fotografava dois transeuntes apressados carregados de sacos. Posso sentar-me? Perguntou-lhe quase em surdina num inglês imperfeito. Ela anuiu surpresa mas com um sorriso. Juntou a sua bebida à dela e perguntou-lhe de onde era. Descobriram que falavam ambos a mesma lingua e que ambos estavam à descoberta. Espreitaram as fotografias um do outro. Riram-se de coisas sem importância.
Continuaram a viagem acompanhados até o sol se ir embora. Veio a lua e as estrelas também vieram. Não as contaram mas souberam assim que no dia a seguir podiam continuar viagem. O tempo estaria bom. Ditava-o o céu. Só não lhes disse se iriam continuar juntos ou se cada um iria para seu lado.
Quando adormeceram ela tinha-o guardado na sua máquina fotográfica. Ele também.
Fosse como fosse ninguém lhes tiraria o que ambos tinham tido e podiam assim guardar.

sexta-feira, 9 de abril de 2010

A ultima coisa

Da ultima coisa de que se lembrava era do cheiro que andava pelo ar. Um cheiro que lhe recordava a meninice e as idas para a escola. Os muros cobertos de flores lilases libertavam aquele mesmo cheiro adocicado.
Apeteceu-lhe ficar ali sempre. Não lhe doeu a espera que sabia não ia ter resultado. Vagueou por tempos antigos e deixou as horas caírem sem se dar conta. Depois veio-lhe uma súbita vontade de partilhar tudo isso com ele e apercebeu-se da sua ausência. Tinha-lhe dito que não estaria com ela. E -lo.
Levantou-se e voltou ao que prometera a si mesmo fazer. Cumprir os trajectos que traçaram a dois. Entrou no carro, pôs música bem alta e seguiu viagem. Hoje saltaria algumas coisas. Perdera-se demasiado tempo em sonhos. Era preciso voltar ainda cedo a casa.
Não sabe como fez a viagem. Não se lembra do caminho. Só mesmo do odor daquela planta de que não sabia o nome. Apetecia-lhe ter trazido um pequeno ramo. Teria de lá voltar.

Doía-lhe ter estado sozinha. Pior, não ter estado com ele.
Essa sim, foi a ultima coisa que lhe ficou na memória.

quinta-feira, 8 de abril de 2010

Voltar atrás.

Eram já muitos os dias que chorava a sua ausência. Viriam muitos mais. Não secava aquele caudal em que ele se afundava lentamente. Deixava-se ir. Nada lhe fazia ter vontade de voltar à superfície que cada vez ficava mais longe.

Tinha-lhe dedicado todo o seu tempo. Deixara amigos e família. Só tivera olhos para ela. A única razão da sua vida era ela. E agora não a tinha. Escapara-se-lhe duma forma imprevisível e prematura. Sonhara-a para sempre. Como podia agora viver sem a ter a seu lado? Percorrer as mesmas ruas, olhar os mesmos pôr do sol junto aquele mar de que ambos tanto gostavam, não mais seria possível.

Mirrava de tanto chorar. Em contraste com a Primavera que se espreguiçava lá fora o Inverno descia dentro dele. Era um homem velho e quebrado que de vez em quando saía à rua. Parecia carregar a morte dentro de si. O coração, de luto vestido, parecia despedir-se de tão leve bater.

As noites traziam-na viva nas memórias e sentia falta do corpo que tantas vezes abraçara. Ao lado, a cama despida, despedira-se das formas que ela um dia deixara. Nem uma camisola velha para lhe sentir o cheiro... Só a sua falta.
Como queria poder voltar atrás!

quarta-feira, 7 de abril de 2010

O tempo fazia-se tarde

Hoje meu corpo cansado deixou-se ficar abandonado a um sono que não o deixava. Não sei de onde lhe vinha tanto cansaço depois de tanta vontade de não parar. Nem os ruídos habituais o despertavam. Nem os mais irritantes do telémovel abandonado. Nada lhe dava o impulso necessário para sair daquela letargia. Hoje queria só dormir.

Lá fora havia sol. Sentia-o porque dormia sempre de persianas levantadas e a luz entrava sem pedir licença quarto adentro. Era assim que gostava de acordar. Imundada de luz. Hoje, atravessada por ela, deixava-me dormir. Sentia-me afundar na cama e deixava-me ir. Em paz.

Sabia de tanta coisa que tinha para fazer. E deixava-me estar. E o tempo fazia-se tarde.

segunda-feira, 5 de abril de 2010

Para bem longe...

Leva-me para bem longe daqui. Para um lugar onde possa respirar. Rouba-me a este lugar onde já não caibo.
Aqui definho. Faltam-me horizontes por desvendar, sonhos por sonhar.
Morreu parte de mim, a que sabia inspirar e expirar. A que me fazia abrir asas e voar.
Leva-me e ensina-me a fazer tudo de novo.

Ele levou-lhe um dedo à boca e -la calar-se. Estendeu-lhe a mão que agarrou a sua e puxou-a até si. Vem! Vem comigo. Deixa-me fazer-te evadir deste sítio em que te deixaste ficar. Sei de gestos e palavras, sei de lugares e de cheiros que te farão renascer. Abandona-te aos meus cuidados. Mesmo que só por uma vez. Adia a morte que carregas para quando ela vier.

Ele levou-a. Ela foi. O caminho fez-se de passos lentos e ritmados. Mas de ânsias de liberdade.
Mais tarde ambos levantaram voo para lá de tanto peso que finalmente deixou de ser fardo.

sexta-feira, 2 de abril de 2010

Saudade


Uma caixa estreita e comprida abraçava-lhe o corpo agora sem vida. Nem as rendas e os folhos lhe tiravam a frieza que teimávamos em vão aquecer. Parecia-nos impossível tanto frio sair daquele corpo quando estávamos habituados a rosetas como maças vermelhas a brilhar, uma de cada lado da face.
Tentava imaginar que voltava de novo ao ventre de que um dia tinha sido retirada. Desta vez a mãe seria a terra. O útero, aquela caixa onde depositei a sua ultima oração. E várias flores. As de que ela gostava. Um terço: o que ela desfiava noite após noite. E as nossas preces.
Assim alheava-me da sua partida e preparava-me para uma chegada a um lugar qualquer. Um lugar onde ela me esperaria até um dia nos encontrarmos. Porque também eu faria a viagem. E num qualquer ponto de encontro renasceria como ela o faria agora para pormos a conversa em dia.
Talvez a melhor despedida se traduzisse num "até já" sem data marcada e não fossem precisas lágrimas para um adeus assim. E no entanto em desgoverno elas teimavam em cair porque por algum tempo só nas minhas memórias a vou encontrar. É a saudade que vem para ficar.

quinta-feira, 1 de abril de 2010

Partiste


Era a hora da partida que te assustava mais. O desconhecido. Não saber o que havia para além desta vida que conhecias bem demais. Não te assustavam as agruras, pois conviveras com elas. Fizeram de ti a mulher que sonho um dia ser. Forte e destemida. Mas partir desta vida... assustava-te. Por tanto que deixavas e tanto que querias ainda viver.
E afinal foi só um suspiro o que te separou de nós. Um sopro ténue e deixaste-nos. Mas não te vamos esquecer. Nunca e tu decerto o saberás.
Faltar-me-ão as tuas risadas, o teu humor contagiante que eu queria ter herdado de ti. A tua vontade de viver, de mudar as coisas a toda a hora. De fazer cada vez mais e melhor. De tantos planos sempre novos...
Nem o tempo que nos foi negado pela vida fora nos afastou tanto quanto julgavas. Estás em mim. Em tanta pequena coisa! Como só é possível acontecer entre mãe e filha.
Ainda vou a tempo de te dizer uma vez mais? Gosto muito de ti, mãezinha!

E sabes, quando partiste, foi para dentro dos nossos corações. É lá que te sinto. É lá que te vou guardar. Aconchega-te. A tua viagem continua.