domingo, 29 de maio de 2011

Para que nunca


Naquele instante sentiu o barulho áspero de papel a rasgar-se inutilmente dentro de si. Inutilmente. De nada lhe servira a existência de tal testemunho. Nunca e para sempre. Baixou os olhos, agora fechados. Pedaços indecifráveis, agora como estilhaços, guinavam em todas as direcções dando golpadas de luz.

Como quando era criança. Empoleirada na laranjeira mais alta do quintal, encostada a um ramo mais forte, protegida por outros ainda, deixava-se estar até não aguentar as picadas das formigas que lhe subiam pelas pernas lambuzadas pelo sumo das laranjas que entretanto comia. Esquecida do tempo. Esquecida de todos, ali ficava até ao cair da noite pela fresquinha quando o sol se cruzava com a lua e ela lançava foguetes, carregando sem piedade nos olhos fechados com os polegares até todas as cores se juntarem à festa.

Fora criança, sim. E prometera que um dia quando num papel ela fosse mãe, nunca ele se rasgaria no peito de quem ela o fosse.

domingo, 22 de maio de 2011

Havia quem o chamasse.


imagem de Paulo Pereira


Na cabeça dele as histórias germinavam todos os dias. Não eram necessárias as chuvas, nem o sol para aí era chamado. Cresciam assim sem pedir licença e desciam-lhe ao corpo todo. Eram tantas que já não cabiam ali. Tantas que tinham de viver fora de si. E levá-lo com elas. E ele ia.

Havia quem o chamasse. Em vão.

Eram talvez sonho, ilusão. Tudo isso parecia aos outros. E nele era o que mais lhe acontecia. Chorava, ria, fazia-se criança e homem. Apaixonava-se, nascia , morria. Ali naquela mesma vida que todos lhe viam. Naqueles dias em que ninguém entrava além do bons dias que raspavam nas esquinas dos voos que lhes rasavam furtivos encontros.

Havia quem o chamasse. Em vão.

Um dia não voltaria mais.


terça-feira, 17 de maio de 2011

O amor


Existe, dizem que sim.
Às vezes roça-nos implacável, tatua-nos. Dele só fica, por vezes, às vezes, a dor da marca o odor da carne que se queimou no atrito, desfeito, esquecido, abandonado.
Memórias abertas às vezes, de vez em quando, nos sulcos lavrados na pele, antes macia como veludo. Agora em retalhos quase puída, daqui e dali cozidos a esmo, manta de cores e de amores talvez.
Às vezes calor, às vezes sustento. Restos, talvez, de histórias que existem dentro de nós.
Dizem.

segunda-feira, 9 de maio de 2011

e se...


e se te beijar ou te abraçar mesmo, será só um impulso. que não calarei. como não o faço nas palavras que verto nas tuas mãos. livres, sem rédeas e nunca amordaçadas.

colho quanto me dás nos pequenos gestos ( suspeito que nem disso te dás conta de tão sorrateiramente o fazer) e num braçado carrego-o junto de mim.

devolvo-te tudo. nesta forma que tão bem conheces. inadvertidamente um gesto meu faz-se pássaro a voar no céu do teu corpo. poisa tranquilo na planície onde searas plantadas se deixam agora amansar.

enovelado em mim teu corpo celebra o regresso e deixa-se viajar.

sábado, 7 de maio de 2011

Um gesto simples

Bastou um gesto simples.
Uma palavra antiga. E fechou-se tudo ali.
Podia ter sido noutro
local qualquer. Podia.
Doutra maneira,
também.
Mas não era importante.

Um dia as memórias
conservariam todos os detalhes,
acrescentariam alguns,
fariam a sua obrigação.

(Agora resta um ligeiro alívio apesar da dor de cabeça que persegue estas decisões.)

Um adeus anunciado a cada instante.
(Fora o que fora.)

Dizem que quando não se fala....
E quando sempre se sente?

Este gesto de mão
sempre a bater à porta
das emoções.
Este acenar inquieto
a que baixamos os olhos
por querermos ainda
mais.

É a dizê-lo,
a fazê-lo
e de costas voltadas avançar
que se cala o que tanto
se adiou.

Um gesto simples
e a palavra mais dolorosa que conheço.

quinta-feira, 5 de maio de 2011

Coisas inúteis



Deste-me a mão. Lá onde marcámos encontro. No tempo em que ainda só em botão se adivinhavam flores e no entanto o cheiro pairava já no ar. Era uma borboleta que pousava no parapeito da espera em jeito de voo se tu não viesses. E eu com ela. Sem querer voltar atrás. Queria que tudo fosse simples. Como o são o abrir dos olhos nas manhãs de todos os dias.

E vieste com o teu sorriso aberto. De repente estava dentro dele. Sorrindo também. De mãos dadas.
Não houve promessas. Nem troca de flores. ( Não tinham nascido ainda, lembras-te?). Voámos. Isso sim. Voámos muito. Para longe de nós. De cada um de nós. Por breves momentos despimo-nos da vida que carregávamos e, leves voámos. Felizes.

Regressámos ao que somos, depois. Ao que somos, agora. Recordo a tua mão, os dedos estendidos um vago aroma que não identifico e um sorriso de que perdi a chave.

Alimento a esperança dum novo encontro. Coisas inúteis.

domingo, 1 de maio de 2011

Um adeus


Deixar-se ir ao correr dos minutos sem os contar. Embarcar no tempo esquecida de tomar conta de quanto nele há. Vadiar, vagueando sem rumo. Perder-se mesmo. Despedir-se das memórias, um fardo que a sufoca e amarra na voz que a custo sai arranhada, entrecortada pelo sal das lágrimas, pesadas e teimosas. Para sempre. Lúcidamente, adeus.

Ainda o sorriso, o olhar, as palavras. Sobretudo as palavras e aquele olhar quase perdido. A encontrar-se no dela. Perfeito. O encontro da pele, o cheiro, o sabor, alquimia, vertigem em rodopio. Agora, também e para sempre num arrepio. Evidente.

Ausentar-se é quanto pode fazer. Abandonar quanto ficou perdido naquele tempo. Noutros tempos outras memórias virão. E em lugar de lágrimas crescerão sorrisos.