sábado, 16 de outubro de 2010

O primeiro aniversário

Era o cantinho onde fumava. Uma cadeira de verga com duas almofadas. A cadeira viera já de outra casa e de outra divisão acabara ali na varanda ao pé da porta do quarto. Junto a ela uma mesa pequenina. Um cinzeiro, uma moldura com uma fotografia dela , um suporte de incenso e um móvelzito de madeira pintado duma cor antiga a fingir ser armário. Com a porta semiaberta podia ouvir a música do cd que deixava a tocar de acordo com a vontade do momento.
Acendia o cigarro, deixava-se ficar a olhar varanda fora. Olhava quem passava ou então ficava só presa ao que a rodeava. Em frente tinha um armário com livros. Lia as lombadas uma a uma e de vez em quando parava e pensava nas histórias que cabiam em cada uma. Aninhava-se dentro delas. Ausentava-se da vida que se espreguiçava lá fora até que o cigarro acabava. Às vezes deixava-se ficar a ouvir a música até que o cd acabasse. Sabia-lhe bem aquele espaço só dela. Podia até fumar mais um cigarro ou então agarrar um livro e ler.

Foi aqui deixando segredos e memórias. As capas dos livros tomaram a cor do tempo e as almofadas esqueceram-se da cor que, quando novas, tiveram. A verga da cadeira estalou aqui e ali mas, era o canto a que voltava sempre que queria estar sozinha.

Foi quando a mesa pequenina que sempre fora frágil, um dia, num gesto descuidado perdeu uma das pernas que o movelzinho caiu ao chão e abriu as portas pequeninas de forma descarada. Saltou de lá de dentro uma moldura que parou nos pés da mãe virada para cima. Protegida da luz do tempo mostrava inalterada uma fotografia que a mãe logo apanhou. Mas sou eu e o teu pai!

Tinham-se divorciado ainda ela era criança. Ela guardara aquela fotografia que um dia encontrara por acaso. Durante anos estivera preservada no seu cantinho, num lugar secreto. Era uma fotografia dum tempo a que ela ainda não pertencia. A fotografia do primeiro aniversário.
O aniversário dum tempo ainda fresco e por isso feliz.
Inocente e verde, como os tempos serôdios o são.
Dois sorrisos bailavam nos rostos que só as fotografias antigas conservam.
Tudo o mais se foi. Assim como as histórias que só nas memórias que se fecharam para novos presentes.

sábado, 9 de outubro de 2010

memória agridoce


 


recordo os cheiros.
alinhados
como  os dias 
no parapeito do tempo. 
as cores das estações a sucederem-se
com o gosto que ainda lhes
saboreio.
retrato da memória que
em mim
vive.
regresso a um tempo
agridoce que não se deixou
ficar.
vive para além de tudo isto.
 de mim, das coisas,
de ti.
uma compota
eterna
a deliciar-me os sentidos.
dissolvo-a

de

va

gar

a absorver
cada coisa
que agora deposito
com cuidado
num espaço a que chamo
meu.

afinal sou também feito do que já
fui.