segunda-feira, 31 de outubro de 2011

conversas imperfeitas


"perguntava-lhe ele, tu sabes o que estás a representar para mim?
conheces mesmo a tua dimensão dentro de mim?
num sentido libertador e de união comigo próprio?
e ela, surpresa, portadora de novas, sempre diferentes e avassaladoras coisas, interroga-o de volta, mas como, meu amor?
ele que quase sempre lho diz, replica, eu tenho tentado, acho que vou ter de tentar todos os dias, dizer-te como.
não te esgotes, eu sei, também eu o sinto. no amor que te tenho.
amo-te. respondeu-lhe ele."

os dias passaram. as palavras também.
como quase todas as coisas habituaram-se aos contornos das horas, dos rituais. mecânicos.
esqueceram-se as palavras que se inventaram. os códigos. os sinais. inventaram-se palavras que falavam de mudanças que pareciam normais.
esquecer o que se tinha dito era a regra. fazer história e criar memória não fazia sentido. o futuro era um tempo que não se conjugava já.

todas as conversas do passado eram conversas pretéritas imperfeitas.

operários

vagueiam
nas noites quentes,
procurando
alívio no estertor
dos dias.
sentem-lhes o pulso
fraquejar e o peito
arquear
num ruído
que só os seus ouvidos têm o dom de ler.

deitam-se então
nas horas fartas
de luz,
cobrem-se do manto espesso
dum silêncio
a crescer por entre esquinas
e ruas sem destino.

fabricam sonhos,
(operários de olhos
cavos.)

que todas as noites
se repetem
um de cada vez

em tantos que somos
nós

domingo, 30 de outubro de 2011

tela

desflorada
ardeu inteira por noites e dias a eito.

desnudada
cobriu-se do que achou por perto.

abandonada
agarrou-se ao que de si ficou.

não houve foguetes nem bandeiras
nem estrelas, nem arco-íris

chamaram-lhe pintura e expuseram-na
visitaram-na filas de gente.

a miséria ainda é coisa que rende!

ainda não sabe




fadada foi, não lho disseram

só nos gestos devolvidos que mais tarde lhe ofertavam
nas perguntas de que não tinha respostas e tanto lhe faziam
nos feitiços que não tinha e a faziam feiticeira
de encantos que encantada não sabia de onde vinham

eram de tempos antigos
longe das remotas memórias, as vidas que andavam nela. e não as queria.

virar-se do avesso. banir quanto carregava e voltar aos primórdios.
ser antes de tudo o que agora era e o que com ela trazia.
expor-se a vendavais e tempestades. restar-se quanto baste.
iniciar-se.

antes do degredo, prisão a que se condena. silêncio, vazio, lugar recôndito
escondido de si.

(que seja sombra e nada será
porque a luz na sombra se esconde para não se encandear de si.
destroçar-se-ia então.)

venham as fadas e dispam-lhe a alma com que a adornaram.
de tão apertada, asfixia-a.

morreu já e ainda não sabe.

sábado, 29 de outubro de 2011

desabrocho

há um caudal de ternura,
rosa flor,
no meu peito a crescer.

pele por lábios
acordada,
em primavera a brotar.

dos teus dedos
o desejo
desfaz nas horas
a distância.

quebrada

pelo mastro
que ergues
por entre nós.

velejar corpo adentro,
rumo à nascente.

deixar cair
a semente.

cresces em mim.

desabrocho.

desfaço-me

desfaço-me entre mim
e o que sou

num tempo perdido.

por lá andarás,
vadio, vasculhando
réstias
emboloradas, do que cravaste

bem fundo

em cantos meus
possuídos por ti.

violentada,
sangro memórias
em cores destiladas

(castanhos ferrugem,
amarelos torrados,
verdes que sempre o serão)

denuncias-te pelas pegadas
e só eu as sei.

quinta-feira, 27 de outubro de 2011

Ainda que

ainda que sobreviva. na tua pele.

a eterna feição do estio.

e o teu sorriso. permaneça igual.

ao dos longos passeios. junto ao mar.

é triste mudar de ano.

privado

do teu olhar.

A. S.

frio

a memória desgasta.

a nitidez da luz.

quando abro os punhos.

há uma aridez que torna o frio.

mais próximo.

da carícia ausente.

A.S.

para quando



escreve-me com a tua pele
todo o abismo do desejo
toca-me
abraça-me
ata-me

pedia ele morrendo-lhe nos braços


com laços de ternura, tão só
para te soltar de novo.

e abria-lhe no colo as asas prontas a voar

o desejo?
o abismo?
fechemos os olhos e sejamos o que quisermos.


para quando já sem me leres,
já sem te ler,
for o que fomos em tempos idos.

Só toque, só cheiro, só pele.

corre


E que
entre as palavras
e os gestos
não se esfume o tempo
nem se vão
os pássaros

transportando segredos
assim
por desvendar.

perdidos ficamos
nas promessas
que nunca nos dissemos

e brincam prazenteiras
nas eiras em que seca
o milho rei dos
beijos
que ainda não demos.

corre a buscá-los, meu amor!

um adeus que não se quer


o toque esquecido, já.

intervalo dorido
e o voo de asa quebrada.

o sabor das memórias
embrulhadas na rapidez
dum adeus que não se quer.

emaranhados...
num rodopio sem fim.

O teu nome

maior que as janelas. o teu sorriso. É pura luz da manhã. azul esmalte.

palavra descalça. nas sandálias do vento .

é mar intimo. e cheira a romãs.

há nele um porto que sorri. um pátio que festeja.

do teu sorriso. zarpam crianças e baloiços.

não sei como se escreve. o teu nome.

chamo-te sorriso.

A.S.

hoje


hoje, acerca-se das memórias por fazer

há promessas neste rio
em marcha descompassada para a foz
que espera em turbilhão
acolher-te e abrigar-te.

repousar, enfim.

da palavra


da palavra
nunca
escrita.
fala
a tua
pele.
sedenta
de luar
plena
de
rumores.
não há
palavra
que
a nomeie.

A.S

terça-feira, 25 de outubro de 2011

A tua casa

"eu sou a tua casa
e o teu coração

é em mim
que tens de estar,
porque queres naturalmente estar
por isso me amas

não precisas de me proteger de ti
quero tudo o que aí há
percebes?

e quero-te aqui e fora daqui
em qualquer lugar"

A.A.N.

segunda-feira, 24 de outubro de 2011

ama-me só


eu cubro me de tristeza porque preciso
é com ela que eu chego ao que é fundamental em mim.

mas ver-te assim, faz-me mal e preciso de ser mais que só olhar-te. responde-lhe vendo-o sumir-se em pedaços que se despenham em sítios que não conhece e sabe não poder entrar.
doí-lhe a tristeza que também já é sua porque agora tudo partilha com ele.

se juntares tudo quanto agora não sabes onde está, perceberás o sentido? resolves o enigma? voltou ela de novo perguntando se podia ajudar.

ama-me só. basta que ames.

e tanto amor não bastou. soube-o tarde de mais.

era uma vez


anda daí.
vamos brincar para o castelo

aos reis e rainhas?

sim, queres?

sim

quero uma coroa

faço te uma com flores

e e dou-te uma espada de pau

gosto dessas

e depois, reinamos

sim!

e seremos reis justos

muito justos
e alegres
muito

sim
felizes

também
sem duvida

e tu nunca vais embora

e tu tb não
pois não?

ninguém vai embora

sim

porque lá
toda a gente é muito feliz

sim
ninguém
nem tu nem eu
quer deixar de ser feliz!

pois não, rainha sábia

adoro-te meu rei

e eu a ti, querida rainha

domingo, 23 de outubro de 2011

Numa mulher, talvez!


"Eu vou conquistar te todos os dias porque gosto e preciso tanto de ti. Porque me fazes tão feliz que não posso deixar que não gostes de mim. Vou seduzir- te todos os dias.
...

É o que eu quero fazer. É isto que eu quero da vida.
Estou a pedir muito?"

Nada é muito quando as emoções transpiram inocentes no calor das paixões que despontam. Todos os sonhos são possíveis e os passos se alinham na caminhada que é um desejo a crescer. Atravessar de mãos dados um futuro de que não temos memórias e fazê-lo de sorrisos e esperança quando na bagagem ainda pesam cargas que nos fazem arrastar os pés, é a senha dum tempo melhor.

Como se o tempo por fim devolvesse o que algures tivesse tirado sem aviso. E agora numa aberta desse a possibilidade única de que tudo retomasse o devido lugar. Numa Mulher, talvez!

querida(o)

"querida!

és-me querida
quero
querida

querida é aquela (e) a quem queremos
e eu quero-te
quero-te!
e gosto de te querer
e que me sejas querida."

e assim lhe ensinou como querida era querer.
depressa ela o entendeu e também lhe quis chamar assim.
porque o queria da mesma maneira.

por tanto tempo aquele querer cresceu que
nunca mais pensaram como nasceu.
só no dia em que por fim, morreu.

Degraus


De repente tudo me parece maior ainda. E eu mais pequeno, como se agora mingasse e quase desaparecesse. Há ainda tanto mundo para descobrir. Posso ainda desdobrar os meus sonhos neste devir e deixá-los espreguiçar. Se há bocejos, serão para acomodá-los. Passo a passo, degrau a degrau construí-los.

sábado, 22 de outubro de 2011

A crescer



Sempre naquele jeito de garoto de olhos arregalados para o mundo dava-lhe as mãos e da boca saí-lhe a confissão,tenho de te dizer que agora vais comigo para todo o lado, deve ser porque gosto muito de ti, não achas?
Esperava a confirmação ao que sentia, ouvindo da boca dela a mesma coisa. Num tempo de sintonias perfeitas.

E andaram assim por muito tempo dentro um do outro por todo o lado, até ser tão banal que ele nem dava já conta de tal coisa.

Como um casaco que toma a forma do corpo e se acomoda a cada recanto como se de pele se tratasse. Corria, como menino, no espanto dos dias e das coisas. Na ânsia de gente e das tropelias por inventar. Fazia-se o casaco de remendos, a pele de feridas por sarar.

Lá longe não se ouviam avisos, de nada se queria saber. Já tudo se sabe mesmo quando tanto há para aprender. Sozinhos, somos gigantes e construímos universos com espadas de pau.

São assim os rapazes a crescer. Até um dia serem homens. Pelo meio, as mulheres dão-lhes colo até poder.

em ruínas


e ele disse-lhe, és a pessoa mais doce e uma das mais talentosas que eu conheço.

a ela caíram-lhe lágrimas. não eram doces. um sabor a sal quente. um ardor em ferida aberta.
não houve talento para desfazer o que sentia.
as palavras não eram as certas. a magia não acontecia. ser o que parecia ser, não bastava.
era como todas os outros. desfeita em água, consumida de dor.

era preciso voltar aos tempos em que despidos se foram a pouco e pouco revelando e inventando espaços que tomaram as suas formas.

há uma casa em ruínas, um sabor agreste e um não saber que fazer, a não ser partir.

terça-feira, 18 de outubro de 2011

Chuvas.


As chuvas chegaram em tempo de Verão. E com elas, tempestades.
O sol não as levara. Pasmava só.
(Como podiam correr tão bravos os rios se lhes adormecia a nascente...)

Em terra gretada, dura de ausências, fendida pela sede, a gota desliza e faz-se gigante. Alheia-se de berços feitos em esperas antecipadas. Sonhos desfeitos, feitos barro de pés molhados.

São tão pequenas as pernas nas corridas que lhe sinto. E as gargalhadas, que saudades de as ouvir.
Só um murmúrio, uma pressa e o medo a crescer.

Faz-se onda. Faz-se mar. E ninguém sabe nadar.


Ninguém


De nada serve
esbracejar
quando nos afundamos

sozinhos.

Apenas
apressamos
o inevitável.

Ninguém

nos dará a mão
ou nos estenderá
um ramo.

Restamos

nós e a água
que desesperadamente
procurámos.

Tragada
em goles
com a sofreguidão
de secas vividas.

No medo de amanhãs
sem futuro.

segunda-feira, 17 de outubro de 2011

Lá de longe


Lá de longe, de armadura vestida e lança na mão, foi um beijo que nos lábios da sua princesa deixou e até amanhã, sussurrou.

De manhã ao acordar, alimentados os dragões de guarda ao castelo, hasteou, a princesa, a magia dum beijo. E o sol nasceu dentro de quem lho havia dado.

O sorriso, esse, nasceu abraçado aos lábios onde o beijo dormiu

Não se soube de batalhas, mas de danças e desejos a nascer em campos verdes de esperança.

domingo, 16 de outubro de 2011

Não me acordem!


hoje prolonguei-me pela noite.
não me acordem, pois então.

dos sonhos fiz-me esquecida, não tenho casa para tanto.
é no escuro que me enrolo, e com silêncio me cubro
neste chão a céu aberto.

sinto o frio e deixo-o vir.
reconheço-o quando passa no meu corpo
como amante, ávido de mim, possui-me.

entrego-me.

sábado, 15 de outubro de 2011

Parar


Um recanto da casa,
só.

O tempo que pousa lento,
ali.

Respirações suaves e tranquilas,
a cair devagar.

A sorver a minúcia dos dias
na ponta da pele,

encosta as pestanas
ao silêncio.


(Parar para recomeçar.
Como água para a sede...)

sexta-feira, 14 de outubro de 2011

Palavras



De repente tudo perde sentido.
Nada é o que parece. As palavras perdem-se em jogos dúbios.

Não. Não há palavras honestas.
Ou enganam-se elas a traduzir o que sente quem as diz?

Nada aprenderam nas lições entre coração e razão, no tempo que a vida lhes deu.

São farsantes, nada mais. Deixas mal ditas num palco de cenas ataviadas à pressa.

É para pôr em bocas de marionetas. Que importa?

Borboleta

Larguei o casulo. De viagem marcada.
O mapa nas asas traçado de países a desbravar.

Vida tão breve.
Ainda agora fui abraço e não sou senão aceno
a ondular
nas ondas dum vento
que teima em me empurrar.

Desenrolo as asas
e os segredos.
É na luz que procuro que me vou perder,
uma e outra vez.

Borboleta enfeitiçada.

quinta-feira, 13 de outubro de 2011

Aquele lugar

Há muito que não havia portas naquele lugar. Todos os sítios eram de passagem sem entraves. Corria por eles o vento em assobios de miúdo travesso, a vasculhar cantos e varrer sombras. Atrás o sol até onde podia.
Era aí, onde ficava mais frio que gota a gota, escorriam em segredo as histórias que ficaram por contar. Palavras simples trocadas na azáfama dos dias são agora silêncio.

Não ouso profaná-lo. É na ponta dos pés e de mãos estendidas que tacteio o caminho que me chama. Nas minhas costas sinto a luz a despedir-se. Fico cega. Deixo-me cair. Encosto-me a uma parede e sinto um arrepio. Tapo a boca para  reprimir o grito que se solta do peito. Tento de novo. Sei agora que me encosto à pele desta casa. Deixo-me estar. A pouco e pouco percebo o que rodeia. E ouço. Tudo o que há para ouvir.

É o assobio do vento que me lembra que está na hora de voltar. Um rasto de luz também. Muito pouca, já.
Vou muito devagar, com vontade de não sair. Sinto-me mais leve e levo tanto dentro de mim!

Foi quando a luz me incendiou os olhos  e senti que pertencia ali, que percebi que era comigo e com mais ninguém que tinha estado. Só a mim me tinha ouvido.

Ninho à chuva

Tem chovido no meu ninho toda a noite e todo o dia
um chover em demasia,
que me imunda e traga inteira.

Passam pássaros que me alentam e me dizem,
vai passar.
Outros que com as asas me cobrem...
(não percebem que assim,
juntos, nos vamos afundar).

Esta chuva que não passa
e este ninho  não é barco, não tem remos
nem casco para tal mar!

Sai do ninho enquanto é tempo
(ouço o vento a dizer)
e do que tinha e que fui, o que faço, onde vou?

Foi no vento, é no vento que vem o tempo a mudar
Sacudo as asas das águas
e parto para lugar seguro

Já tenho um ninho a crescer.



quarta-feira, 12 de outubro de 2011

hold me

um sorriso não se sente
se não se vê.

mas um soluço
no meu peito contra o teu...
faz dos teus braços
a margem para o rio que dele sai.

e moram lá sorrisos
peixes que voam no olhar

agora no teu abraço a ondular.


Aos anos

Nada lhes podemos fazer a não ser acolhê-lhos
como se fossem ainda a manhã do primeiro dia.

Com a surpresa hasteada
e a esperança como hino.

Porque assim ainda valerá a pena.
O resto são ratos a fugir deste barco
que teima em naufragar.

Há ainda tanto e muito para navegar.

Este mar ainda é  nosso!

Amor

Não.
Não é preciso inventar
o que há já em nós.

 Num despertar de descoberta
em toques de mãos de ternura
 e sorrisos cúmplices.

Os silêncios cheios de futuro
 nos gestos para vir
farão o amor desabrochar
na estação perfeita.

Mesmo em climas desordenados,
mesmo assim.

Segredo


e o segredo que te deixo
não é senão
a pergunta que afinal
te havia já
 pousado nas mãos.

lembro-me de as ter visto
caídas.
abertas.
dos teus dedos
escorria-me.
e tu comigo.
não podias dizer-me
agora
outra coisa que as tuas mãos
não me tivessem já
dito.
e mesmo assim
atrevi-me.

foi no teu silêncio
que me afoguei.

terça-feira, 11 de outubro de 2011

O último desejo

Esperou-a no mesmo sítio de sempre. Não por hábito ou preguiça. Também não era um ritual. Não era homem de rituais, nunca se pensara assim. Sabiam-lhe bem as esperas naquele lugar. Como se não se medissem de forma nenhuma. Como se a pressa e o vagar finalmente se tivessem entendido e de mãos dadas limassem esquinas e oleassem engrenagens na máquina do Tempo.

Hoje não levaria nada. Havia sempre qualquer coisa que levava para aquelas ocasiões. Um livro, muitas vezes um que tinha dificuldade em ler. Fotografias que encontrava e queria legendar. Às vezes a sua companheira, a velha máquina analógica. Não se habituara ainda às digitais. Fazia uma ou duas fotografias. Gostava de captar as emoções das pessoas, de as surpreender naquele lugar mágico. Outras vezes levava os binóculos que pertenceram a seu pai. Carregava nele um certo voyeurismo que alimentava de vez em quando, nunca o negou. Dissimulava-os num saco de cabedal que trazia a tiracolo e escondia quando alguém passava. Ou debaixo duma revista que também gostava de trazer para ali. Deixava-a por vezes aberta em cima dum banco pelo prazer de a ver folheada pela aragem do vento. Era o despertar suave dos pensamentos que vagueavam em liberdade.

Mas, hoje, os braços pendiam e só a espera acontecia. Seria a última vez que ali estaria. 
O Sol foi-se. A Lua chegou.
Olhou à sua volta. Não havia mais nada para carregar na mala de tanta coisa para lembrar.
Agora, sim. Podia fechar os olhos.

Todas as ruas

Todas as ruas são probabilidades, todas as terras moradas. Todos os rostos possíveis e todos os corações são caixas de segredos por abrir. Sem os passos que as pernas dão, a vontade que nasce na força que se inventa na fome e na sede, não há nomes nem datas, nem números. E tudo isso é preciso para voltar.

Era sol que fazia

era sol que fazia. um calor que abandonara o tempo dele e visitava outro para lhe arregaçar as mangas e conhecer os tornozelos. um outono de cores quentes e visitas a parques de folhas no chão, era agora tímido mas alegre nos calções que vestia quando enfrentava as águas ao cair da tarde para refrescar os ardores que os dias traziam. e olhava para si espantado! um tempo desgovernado. no mesmo compasso do mundo. como se um mesmo maestro de batuta enfernizada o andasse a inventar. era sol que fazia. mas dentro dela chovia. dentro de tantos a tempestade acontecia. levantou-se, como todos os dias acontecia. nada tinha mudado para além dos dias. para além dos sonhos. trancados ainda. fazia sol ainda. não podia acreditar como podia ainda fazer sol. decidiu reger-se pela batuta, mesmo que fosse infernizada. há maestros que podem mais que ela. só ela sabe quanto trovejou no seu peito. e a chuva que caiu a seguir. depois viria o sol. como nos dias. mesmo que não fosse no seu tempo. um tempo desgovernado. no mesmo compasso do mundo.

segunda-feira, 10 de outubro de 2011

Datas


Há datas que nos perseguem, números que nada dizem para além das memórias que só nós transportamos.
Códigos que nos cruzam e nos transportam a moradas que já não estão habitadas.
Viagens sem malas e sem tempo marcado. Regressos de mãos vazias.
E sempre um tropeçar a acordar-nos para as coisas de então.

Ainda agora, abraço, podia ser sim, o que tu sabes. Eu também. Só nós dois. Naquele dia. E aqueles números traçados, estejamos onde estivermos, levar-nos-ão nos seus braços e dançaremos enlaçados como se nunca tivéssemos desfeito nenhum abraço.

Depois, o frio volta e acama-se de novo. Muitas datas, outras datas. Uma vida a levar-nos na corrente. Até descobrirmos o código de novas rotas. Levar as mãos à água, enchê-las de água ( que as mãos querem-se cheias) lavar a cara e dá-la a beijar.

domingo, 9 de outubro de 2011

Lugares

Lugares de silêncio e paragem. Estes onde agora estou.
Todos quantos por aqui passam se ausentaram daqui. Hoje, agora. Como se houvesse para mim uma hora marcada numa agenda que a ninguém é desvendada. A minha hora.
E embrulho-me nela. Sequiosa de todos os segundos que me cobrem a pele. Nada existe para além do que sou e tenho em mim. Esta vontade de serenar e de me olhar. De me cruzar com aquela que vive cá dentro aninhada.
Há tanto tempo que não lhe segredo o amor que lhe tenho! Tenho de lhe sarar as feridas, passar as mãos pelo cabelo e no meu colo, deixá-la pousar a cabeça sobre o peito deixando-a falar de tanto por dizer.
Só então irei daqui. Tranquila. Em comunhão.
Fazer caminho é meu destino.

Sou aquela que dentro de mim viaja. O resto é corpo nada mais. Arca andante de preciosa carga.
Tesouro maior, viverá  mais além.

Post-it


Era aquela dor no pescoço que a despertava. e a puxava de novo até ali.

Não podia pairar nos dias. Deixá-los navegar sem rumo,desgovernados. Nada mais fazia que esperar pelo sono e pelos sonhos que não mandava vir. Abrir os olhos de novo e de novo quedar-se por nada. Vaguear.

E a dor de novo. Maldita dor!
O post-it escancarado que a Vida lhe espetava sem dó.
Ah! Pudesse deixar fechado em qualquer distante lugar tudo quanto não quer trazer consigo! Quer lá lembrar-se das saudades que sente, da falta que lhe fazem as conversas e os risos, da cadeira vazia que está ao seu lado?

Sobe-lhe uma agonia feita onda a crescer enrolada, já sem espaço. Não há peito que aguente um mar com tanta bravura.

É nas asas da primeira gaivota que prende o olhar. Vou contigo. Deixa-me voar!

sábado, 8 de outubro de 2011

Tempo

Hora a hora,
minuto a minuto,
segundo a segundo,
todos os ponteiros se foram.
E o Tempo atrás também.

Bate-bate, já não bate.
Já não tem por que bater.

Descem-lhes as pálpebras .
Cegos, mudos e quedos.

Até quando?

(É tempo de procurar o Tempo.)


pequenos nadas

são só pequenos nadas.

já, agora. olhos, mãos, ternura, beijo.
e a cinza a pousar.

entardeces-me tão cedo e que nome te vou eu dar?
traço a traço num abraço marco-te dentro de mim. assim.

cinzas. porque aqui estou. dragão de fogo. eu sei.
são só pequenos nadas.

ficas-me nas mãos. cobres-me o corpo.
é de cinza que me visto.

o teu nome?
aquele que voa no vento

eu sou apenas um dragão nu
são só pequenos nadas!

sexta-feira, 7 de outubro de 2011

Shiu!


Engano teu, meu amor.
Não é um banco vazio este onde as lembranças ressoam.
No espaldar, as tuas costas. O mais lindo dos rapazes!
Eu ao teu colo. No colo do banco mais distante do jardim.
Do resto? Não me lembro.
Havia mais, amor meu?
Só tu cabias nos meus olhos.
Olhos de engolir mundos com asas de anjos plantadas, e soltavas gargalhadas que corriam pelo ar.

Agora é a minha vez. Sou eu que te vou embalar.
Shiu. Deixa que fale a ternura que nos ficou a aguardar.

O mar


Nem sempre longe é distante e perto fica junto.
Recita baixinho como se a prece fosse cantilena ensaiada e repetida até não saber doutras.

Faz dos passos um ritmo e das ondas o compasso.
Das mãos uma concha. Da concha, um cofre.
Mergulha-as na primeira vaga de espuma que lhe abraça os pés.
Sobe-lhe o frio que nasce no fundo daquele mar nascido no Norte. Estremece.

São mãos vazias, as que agora traz. Lambidas pelo sal, de espuma bordadas.
Uma prece, ao longe, levanta-lhe os olhos.
Só lhe resta o mar.
Só.

O mar.






quinta-feira, 6 de outubro de 2011

Cruzes

É a cruz que trazemos, traçada, abraçada
arrastada...

São teus os caminhos, menino. De joelho esfarrapado. Construtor de mapas em memórias a crescer.
Levanta a espada de cruz no punho. (Ai as cruzadas.) Vence fantasmas e ilusões. Meu herói, meu mundo a alargar.

E de passo a agigantar-se vais para longe. De ti não sei.
É das cruzes, dos tormentos. Do que levas, do que te dei.

Sou já velha nestas estradas. Mais antigas do que eu. Falam línguas doutros tempos. Ainda não as sei ler.

Vai menino, vagamundo. Vai por aí em demanda. Desmancha as cruzes e faz delas a fogueira que o meu e o teu corpo precisam para quentes se embriagarem.

Sempre te espero. Dedos cruzados. Braços abertos. Meu corpo ainda é a tua morada.

quarta-feira, 5 de outubro de 2011

Todas as noites

Tinha nos dedos a agilidade nova das coisas a espreitar. A vontade a germinar.
Sementes do cedo a despontar nas cores que falavam palavras ainda não inventadas.

A voz era um pincel erguido. As tintas, colhidas no coração da terra feita de gente.
Colava-se de ouvido ao chão, prenhe das histórias a soluçar.

E em todas as noites nasciam arco-íris. E em todos os rostos sorrisos.

Crime

A porta estava no trinco. A casa no silêncio , não fora o rasgar de papéis denunciá-la. Segui o trilho da nesga de luz. Na ponta dos pés.
De costas para a porta vi-a sentada na sua secretária. Arrumava papéis.
Ao seu lado um monte desgovernado. Rasgados, amarrotados, perdidos em vincos e em cores que já não se usam.
Vejo-lhe os movimentos frenéticos. Percorre agora uma pilha de livros que amontoara do outro lado. Risca quase com raiva palavras escritas em páginas que ora arranca. ora conserva agarradas. Encaixota.
Pára de tempos a tempos para acomodar a convulsão que lhe salta do peito e limpar com as mãos abertas a água que lhe impede a visão.
Tem muito ainda para fazer. Olha para as estantes e levanta-se da cadeira.

Saio como entrei.
Não quero ser testemunha deste crime. Porque aqui morreu alguém.

O tempo

E quando calar não fazia sentido se ouvir tudo era quanto queria. Fi-lo.
Mas nunca era tempo.

E quando estar era urgente porque nos faltávamos. Pedia.
Mas nunca era tempo.

E quando caía a tristeza, a saudade a vontade do abraço e a distância moía. Procurava.
Mas nunca era tempo.

E quando procurava por trás dos silêncios as respostas a tanto por dizer. Esperava.
Mas nunca era tempo.

Esgotada no tempo que não era. Num tempo perdido em terras do Nunca.
Calei-me, deixei de pedir, de procurar, de esperar.
(Não sei se no tempo certo.)

Afinal, que sei eu do tempo? 

terça-feira, 4 de outubro de 2011

Não há luz no farol

Perdida de ti.

No caderno das memórias é outro que encontro.
Quem és tu, agora?
Aquele que em mim entrou, quando saiu, que não vi?

São tantas, demais as  pausas que no lugar das tuas palavras ergo em silêncios amargos.
E, eu, viajante de futuros, vejo-me a remar em águas passadas.
Rios secos que alimento com os que dentro de mim vivem e agora transbordam.

Deixar ir quem quer, perder-se quem se perde por vontade.
Não se é porto, quando não se é destino.

Não há luz no farol!


segunda-feira, 3 de outubro de 2011

Nem sempre


"Send a wish upon a star
 Do the work and you'll go far
Send a wish upon a star
Make a map and there you are"

 Nem sempre a luz aponta caminhos. Nem sempre assim se vê mais além. 
 E o escuro dá-lhe medo. Fá-la arrepiar caminho.
 Desenrola-se, é já tarde. De luzeiros arregalados, mãos estendidas, traça destinos a esmo. Não há tempo, não tem tempo. 
Tropeça, cai, encandeia-se e afoga-se em clarões. Nem sempre a luz... Não há tempo.
 Dá-me a mão e aponta-me os passos do meu caminho. Nos teus pés não cabem os meus. 
 Quantos há? Por onde vou? 
Não tenho tempo. Nem sempre se vê... 

Vês-me ainda de onde estás? 
Lembras-te ainda de como sou? 
Há tanta luz onde te procuro que não te posso encontrar. 

E é de ti que preciso, minha luz, há tantos anos aí no alto plantada.

Forget this not

Dispo-me. Despe-te.
Que nada se atravesse no nosso olhar para além da nudez que somos.

Calo-me. Não digas nada também.
Deixa o silêncio falar por nós. As palavras acrescentar-nos-ão.

Deita-te ao meu lado. Aqui. Neste chão desconhecido.
De olhos fechados, descobre agora quem inventaste de mim.
Fá-lo-ei contigo.

Seremos só estes que aqui nos fizemos.
Nada mais!

Forget this not!

domingo, 2 de outubro de 2011

Sou

Sou a que através dos tempos permanece no nome das coisas
o sabor que conheces sem ter provado
a manhã que te acorda sem saberes do sol
sou o amor que sentes no arrepio que te corre o corpo
e no bater descompassado do teu coração a galope
nas planícies da paixão.

Ainda carrego comigo as memórias
que nunca te pertenceram
e vasculhas com o espanto
que te dou de mãos estendidas. Sou.

Trago-te oferendas antigas. E o dom de as fazeres novas.
És o corpo, caixa, cofre, tesouro. Meu.

Minha nave, barco efémero,
A quem tudo darei e nada peço.

Viajante. Pudesse eu para sempre
navegar só em ti. Pudesse.

sábado, 1 de outubro de 2011

Todos os dias

Todos os dias são dias de sol.

A noite deita-se na  cama de estrelas de países alheios. Leva na mão a lua para a alumiar.
Cantam os grilos aqui em baixo e os rapazes de calça arregaçada fazem rios em despique para os buracos da terra onde eles se escondem. Rios quentes das entranhas, que molham os pés e deixam o fedor inebriar os ânimos e fazê-los entrar em correrias abandonando grilos e abraçar manhãs.

Nas ruelas, a roupa estendida, esconde-os e atrapalha-os. Há cheiro a sabão azul no ar. Oh João! ah rapaz endiabrado, por onde andaste, magano? Tanta lida para fazer...

Vidas torcidas aquelas que os dias de sol não aquentam.