quarta-feira, 31 de março de 2010

Abençoada

Por este sol, por este dia. Por tudo quanto posso alcançar. Pela vida que vivi. Pelo que ganhei e perdi para ganhar. Pelas portas que se fecharam e por muitas mais que se abriram. Pelos sorrisos e pelas lágrimas. Pelas ausências que me fizeram sentir quanto precisava das presenças. Pelas presenças que me confortaram. Pelos amores e desamores, alegrias e tristezas. Por te ter e te perder, ganhando-te para sempre dentro de mim.
Por tanto de que ainda me lembro e por tanto que já se foi das minhas memórias. Por aquilo que me deram e por tanto que me tiraram. Pelos anos que vivi e pelos que tenho pela frente. Pelos amigos e pelos outros.
Pelos filhos que adoro. Por aquilo que lhes posso dar e fazer. Por tudo quanto eles me dão.
Por estar viva. Por ser mortal.
Porque por tudo isto, sou quem sou e tenho o que tenho.

segunda-feira, 29 de março de 2010

Lugares


Há lugares que ficam ligados para sempre às nossas vidas mesmo que neles tenhamos estado por breves instantes. Ficam depositários de memórias que se reacendem ao revisitá-los. E basta um vislumbre, um odor ou um som e voltamos ao que fomos. Como se não houvesse tempo de permeio. O tempo fosse só um presente contínuo. A respiração acelera, o coração bate mais forte e os sentidos mais alerta fazem-nos ser hoje de novo o passado que não morre nunca.

Há lugares que são ancoras, portos de abrigo, que não nos deixam esquecer quem somos e o que somos. Que nos lembram os caminhos percorridos e ajudam a ver os que estão por fazer. Que fazem parte de nós.
Por aí. Ainda por desvendar.

Podia


Podia percorrer ainda os mesmos caminhos. Fazê-lo nas mesmas horas. Com o mesmo propósito.
Podia continuar a imaginar-te de mãos nos bolsos caminhando tranquilamente nos mesmos fins de tarde , fizesse o tempo que fizesse. Podia, meu amor.

Tenho ainda o rio e o cheiro a mar ali tão perto. O roncar do farol ou o coro das gaivotas atrás dos barcos que chegam da pesca. Todas as histórias vividas pelos personagens que te acompanhavam nesses passeios solitários e te faziam regressar em paz a tua casa.
Não fora a doença traiçoeira e ainda te veria por ali. Como vejo todos os anos florescer a Primavera e entardecer o Outono em cada árvore que te amparou ou deu sombra.

E tenho de te deixar ir.
Um dia quando te souber chorar. Talvez assim te vás no caudal das lágrimas que, então consiga deixar cair destes olhos que teimam ainda em querer-te ver.

domingo, 28 de março de 2010

Sombras


Como partindo, ficamos ainda na réstia das memórias que teimam em não nos deixar. Serão só sombra, quase nada, mas permanecem. Fazem-se dor, daquela que mói, surda e cega porque lhe negamos a luz e a trancamos dentro de nós. Cremos que assim, ignorando-a, a aniquilamos. Tolos, deixamo-la crescer. Cada vez mais.

E nem este mar revolto com uma fúria nunca vista, meu amor, tem o poder de calar o grito que se desprende, já sem açaimo. Dizem-no as lágrimas feitas rio que se soltam na bravura das ondas que me rebentam nos pés.

sábado, 27 de março de 2010

Os "namoros"

Ao meu lado os risinhos irritantes e a vozinha mimada duma pré adolescente desviam-me a atenção da paisagem relaxante do mar. Senta-se ao colo, onde mal cabe, daquela que suponho de imediato ser a namorada do pai. As duas brincam como duas crianças sob o olhar nervoso do pai e algumas chamadas de atenção para a mais nova.
O jogo de sedução continua bem ao agrado da adolescente que invade o terreno da mais velha sem que esta se imponha. Deixa-a remexer a carteira, espreitar tudo quanto está no telemóvel como se não houvesse limites na sua privacidade.
Só o pai com algum receio vai chamando a atenção usando os dois nomes da pequena alertando-a para o facto de estar a cansar e a abusar da paciência da namorada.
Sim, porque pelo que não pude evitar de ouvir, esta é a namorada do pai. E a cena que presenciei foi uma cena de namoro entre namorada e filha de namorado como ela própria por brincadeira a define.
Fico por momentos a pensar. Em tudo o que envolve estas cenas de sedução e namoro. Nestas relações de quase competição. De quem ganha e de quem perde ou se há apenas vencedores.
Agrada-me pensar que nunca é demais a atenção que se dá a uma criança. Venha ela de onde vier. Nunca são demais os afectos. E que é bom que quem partilha momentos com os nossos filhos os saiba seduzir, amar quase tão bem como nós. Mas saber também que para os ganhar não é preciso fazê-los perder: os valores que lhes transmitimos, o saber, os caminhos que lhes ajudamos a traçar, o farol que somos nós afinal.
Que alguém tenha o bom senso de ser o fiel nesta balança. Porque as crianças, os adolescentes também amam quem lhes diz não, se souberem a razão.

sexta-feira, 26 de março de 2010

ainda assim


ainda assim.
com a teimosia ritmada dos dias
a deitar-se no meu corpo.
a fazer desta pele,
onde os teus dedos hibernam,

outra que teus olhos estranham
por já não a saber.

ainda assim.
me faço cama se em mim quiseres
pernoitar.




quinta-feira, 25 de março de 2010

A dois


Era o tempo e a distância que os afastava cada vez mais. E, no entanto, em tanto espaço crescia um amor que não se explicava. Enchia o peito de tal forma que mais nada nem ninguém lá entrava. Ela já nem entendia como podia ser assim se um dia se tinha despedido dele. Sentira então que tudo tivera o seu final. Enterrara aquilo que não deixara viver. Mesmo assim de tempos a tempos deixava-se revisitar por aqueles sentimentos que julgava para sempre enclausurados no passado. E como desejava avançar! Perder-se de vista de tudo quanto vivera para poder de novo respirar sem desejar senti-lo de novo. Encher a memória de novas canções e outros trajectos, desejar outros abraços e afectos. Querer, sentir por outro o que por ele ainda sente e não quer mais.

Era o tempo e a distância que os aproximava cada vez mais. Porque se deixavam viver na eternidade das memórias. E as memórias não se compadecem de finais que afinal não o são.

quarta-feira, 24 de março de 2010

"Apetece-me morder-te."

"Apetece-me morder-te."
Abria a mensagem e ficava a olhá-la sem saber o que responder.

De tempos a tempos sem qualquer razão a não ser a da ausência e a dos apetites insuspeitados mandava-lhe uma mensagem como um grito que ela não sabia calar.
Falava-lhe numa língua que ela não sentia e deixava-a perdida num mundo sem vocábulos.

Gostava das coisas simples. das palavras que se desenham ao sabor das vontades que crescem a dois. Em harmonia. Inventadas num dicionário que ora um, ora outro constroem, devagarinho ao sabor das marés em que viajam de peito aberto.
Num mar assim, "Apetece-me morder-te" poderia ter como resposta, " Sou tua, naveguemos."
Mas viajará ele no mesmo barco? Falarão ambos a mesma língua?

Não, ainda não vai ter resposta. São bandeiras diferentes as que levam nos barcos que cruzam este mar. Não se entendem ainda. Talvez um dia.

terça-feira, 23 de março de 2010

Era tempo de mudar

De repente faltou-me alguma coisa. Não sabia bem o quê. Tudo parecia estar no lugar, mas não estava. Qualquer coisa se alterara sem eu dar conta. Sentia-me num beco sem saída, numa sala sem luz. Tive de reiniciar a minha caminhada e olhar tudo de novo. Perceber quem ou o quê tinha mudado. Estava intranquila.
Não havia sol. As nuvens, baixas, não deixavam ver claro. Via-se pouco ao longe. Mas era perto de mim que algo se passava de errado.
Tinha feito o mesmo de todos os dias. Vira as mesmas pessoas. Passara pelas mesmas ruas. Nada mudara. E talvez fosse isso. Talvez fosse já tempo de alguma coisa mudar e no entanto tudo seguir o rame-rame traiçoeiro e cansativo dos dias que se seguem e atropelam sem piedade que me deixasse angustiada.
Era já tempo de ser outro tempo.

domingo, 21 de março de 2010

Príncipe Valente

Hoje apetecia-me falar de memórias. Ou de outra coisa qualquer. Apetecia-me sobretudo falar contigo. Do passado, do presente, ou até do futuro. Porque também há memórias de futuro. Nos sonhos que teimamos em sonhar.
Agora és o meu Príncipe Valente e eu não sei quem sou. Não me lembro já a que reino pertenço mas só posso ao teu e a ti pertencer.
Ocorrem-me todas as histórias que um dia a teu lado soletrei. As imagens fluem e fazem-se vida como eu me fiz menina-mulher.
Desde aqueles momentos que tantas vezes partilhámos até agora em que me sento neste café, sozinha, tu viajas comigo. São outras as coisas que soletro para ti. Porque ainda tenho muito para aprender. Um dia saberei quem sou.
Com a tua ajuda.

sexta-feira, 19 de março de 2010

Por agora

Vi-a chorar baixinho. Esperava que ninguém a ouvisse.
Lá fora a chuva caía teimosamente. O sol esquecera-se de aparecer. Há muito que faltava. Todos nós lhe sentíamos a falta. Ela mais ainda.

Era o movimento dos ombros que a denunciava. De costas voltadas para nós olhando o horizonte que se estendia até perder de vista deixou as lágrimas cair uma a uma. Apeteceu-me tocar-lhe de mansinho mas denunciá-la-ia.

Percebia-lhe a dor porque lhe vira crescer o cansaço dia a dia. Sabia da torrente enorme que lhe crescia sem parar. Pudesse eu ser mar onde desaguasse tanta dor e sê-lo-ia.

Por agora, testemunha só.

Mais tarde, a seu tempo, o que de mim ela quisesse.

quinta-feira, 18 de março de 2010

São tantas

São tantas as palavras que me ficam embargadas na voz... São tantas as coisas que me ficam presas nos desejos que não se fazem reais... É tanto, tudo quanto tenho dentro de mim em atropelo que, sufoco.
E como quando esqueço do que vou fazer ou dizer, retomo os lugares de todos os princípios e aí começo tudo também. Como se nada houvesse para sonhar ou saber. Como se pudesse pintar de novo a parede do tempo que vivi, com as cores que a pouco e pouco, os meus olhos conseguirem decifrar.

Não importa que o arco-íris não tenha todas as tonalidades e o céu não seja azul. Não importa que os pássaros cantem doutras formas e as línguas que ouvir me sejam estranhas. Terei todo o tempo para as aprender e palmo a palmo levá-las para dentro de mim.


É quando me esvazio de tudo que crescem, cá dentro, as sementes que o vento vai deixando pelo tempo que passa . Domá-las é a minha condição.

quarta-feira, 17 de março de 2010

Um colo

Era numa carapaça grande que me queria envolver. Com espaço para me enrolar e sentir o aconchego dos seus limites. Como se estivesse num colo gigante, entendes?
Num colo que me protegesse de tudo e de todos e pudesse enfim descansar. Deixar-me ir, sentir o corpo abandonar-se e os pesos que carrego levitarem para longe de mim.
Não preciso de flutuar, basta-me aninhar aí. Desenhar as formas do meu corpo nesse colo em que me deito. Encaixar-me de forma perfeita...

Queria ao menos sonhar-me assim...

De cada vez que o sonho me dá o colo que anseio, acordo num espasmo que, ao devolver-me aos dias de que me quero ausentar, me faz soltar um grito que me devolve a tudo de quanto fugi. Desfaz-se o sonho e o colo.

Continuo a querer uma carapaça como a que existe nas minhas memórias e me adormecia os medos no balanço do embalo que sentia. Mas queria-o para sempre.

Talvez um dia... quando já não acordar mais.

segunda-feira, 15 de março de 2010

Nada mais.

Estou presa a um espaço sem amarras. E quero aqui ficar.
Nada me dá mais liberdade que a prisão a que me entrego. Nada me faz sentir mais livre e inteira.
Agora, sou aquela que se completa a si mesma sem precisar de se estender no outro para ser como é. Agora, abraço a sombra dos dias e danço com ela ao ritmo dum só bater de coração. Deixo-me envolver pela luz que também me aquece e sou todo o universo. Nada mais quero.

Fecho-me à chave neste espaço a que chamo meu e dona de tão pouco que tenho sinto-me a mais rica das mulheres.
Tenho tanto quanto quero e nada mais desejo.

domingo, 14 de março de 2010

Como?

As ruas estavam na mesma. Nada saiu do lugar. Tudo ficou indiferente ao que se fez de nós.
E foi isso que estranhei nelas e me fez sentir não pertencer mais ali.
Talvez sejam assim todos os finais. Desconhecer o conhecido.
Voltar a estrear o que já foi estreado. Viver de novo o que já tinha deixado de o ser.

Não te encontrei por ali e no entanto estavas em todos os lados. Longe. Onde nos pusemos.
Na distância que agora nos é devida. Como deve ser.
Vais estar em cada passo que por ali der, em cada cara com que me cruzar, até um dia te desvaneceres.

Como pode nada mudar, se nós mudámos?

quinta-feira, 11 de março de 2010

Quantas vezes...

Quantas vezes vagueamos sozinhos e não vislumbramos ninguém?
É o tempo das viagens tranquilas. O tempo de todos os tempos. De todas as possibilidades.
Um tempo de olhar longe sem limites, viajar sem bagagens e sem datas. Um tempo que só a nós pertence.

E um dia, num tempo sem contar, há gente que nos atropela nos caminhos que traçamos pelo descuido a que nos habituámos. Dos dias em que rumávamos sozinhos ao correr do tempo fica a réstia que se dilui no embaraçado das pegadas que agora nos acompanham. Fica difícil perceber por onde caminhar. Que caminhos seguir ou deixar.
Começam as interrogações que já não pertenciam ao vocabulário das pausas vividas. Acordam e num ruído pouco habitual tornam-se na melodia dos dias que se seguem.

Tanta gente de tão pouca que havia desnorteia e enlouquece por um tempo.
É o tempo de percorrer os caminhos que não se fazem sem mais ninguém.

quarta-feira, 10 de março de 2010

Oh! Rosinha.


"Oh! Rosinha, Oh! Rosinha do meio.
vem comigo malhar o centeio.
O centeio, o centeio, a cevada.
Oh! Rosinha minha namorada."
O efeito era um sorriso certo e aberto e tu sabia-lo. Era a cantiga que me ligava a ti e às recordações de coisas boas. Nada havia a temer. Estava em segurança. Sabia-o a partir desse momento. Tu estavas lá.
Quando não estavas, trauteava-a baixinho e imaginava-me a teu lado. Não precisava de mais nada. Esquecia o tempo a passar e a razão de ficar fechada um dia inteiro. Não entendia os motivos de tais exilios e afundava-me naquela melodia.
Viajava então numa estrada de paralelepípedos e deixava a voz tremer nos solavancos quase ritmados. Era uma cantora de ópera e tu o meu público. Não havia solidão que aí chegasse.
Não existe solidão quando se vive na memória de alguém.
Agora?
Vou trautear de novo o que nunca esqueci.

terça-feira, 9 de março de 2010

Não sei

Não, não sei se alguma vez te cansas de mim. Das conversas que me ouves, do que digo sem ser para ti. Às vezes paro um pouco e penso que te ausentas. Sim. Talvez te canses. Como posso eu pensar que estás sempre disponível para mim? Que presunção é a minha?

Sinto a falta de te olhar nos olhos. De ver as tuas expressões. De perceber se hoje estás mais bem disposto ou ainda carregas o sorriso triste que te vi da última vez.
E é então que em vez de falar de mim me apetece ouvir-te. Deixo então que o silêncio me invada. Procuro-lhe nas entrelinhas as palavras que possam vir de ti. Um vão esforço.
Não te encontro. Por onde se perderam as palavras que, sei, tens para me dizer?

(Não te canses como eu não me canso de te procurar.
Um dia encontramo-nos).

Apeteceste-me

Apeteceste-me logo que te ouvi. E não tinha vontades, então.
De onde elas vieram e porque se mostraram ainda não sei. Talvez a tua voz ou as palavras que dela se desdobraram tivessem sido a chave para a porta que se encontrava, até aí, fechada.

A verdade é que te sonhei em sonhos que já não sonhava.

Na nascente em que há tempos haviam secado os desejos ouvia agora, gota a gota, o despertar dos sentidos.


É no tic-tac ritmado que me deixo embalar e danço, mesmo sozinha, lembrando o tempo em que o farás comigo.
Memórias dum futuro que deixo germinar.

domingo, 7 de março de 2010

Entre uma e outra

Foto de Margarida Reis
As minhas estão como eram as tuas quando partiste. As delas estão como deveriam estar já as tuas. Entre uma e outra o tempo da saudade.
Um tempo de ausência alimentado nas memórias que plantadas no correr dos dias deram o seu fruto então. Um tempo em que sempre recusei a tua partida para lá de mim.

E se tempo foi saudade a morada foi o coração. E as lembranças que te trazem até mim, essas, mantêm-te vivo. Por isso falo contigo e te confidencio tanta coisa. Razão porque ouves o que não digo e sentes o que não exprimo. Tão entranhado me estás!

Quando um dia, finalmente me encontrar contigo saberei de cor as rugas que ainda não te vi.
Da mesma forma que tu me reconhecerás. Serei de novo a criança que um dia te viu partir. Verás!

sábado, 6 de março de 2010

Palmilho

Pouco a pouco palmilho em ti a viagem que os meus sentidos gritam dentro de mim. Uso a ponta dos dedos, tocando levemente na penugem quase invisível de que a tua pele se veste. Sinto-me estremecer daí até ao centro de mim. E sinto-te estremecer comigo.
Ondulas suavemente à medida que avanço neste percurso sem rumos. És tu que me levas onde queres. E eu vou porque também o quero.
Sou um rio a entrar mar adentro. Espraio-me em ti deixando de ser quem sou para sermos nós.
E é no rebentar da onda que este desejo de estar em ti, denuncia o amor que te sinto.

Sopro agora devagarinho o teu peito cansado. Persigo uma gota, talvez do mar onde nos afundámos, fazendo-a rodar em direcção ao teu mamilo ainda sedento. Recolho-a com a ponta da minha língua. Sinto o teu corpo arquear.
Beijo-te suavemente e deixo-te repousar.

Fico a olhar para ti. Não sei como um dia poderei deixar de te amar!

sexta-feira, 5 de março de 2010

Ainda assim

Fui breve, foi breve a passagem que por ti fiz.
E dizes-me que ainda assim um pedaço de ti se perdeu em mim. As tuas mãos sonharam gestos, os teus lábios palavras, os teus desejos foram semente e eu, campo em pousio, não me deixei fecundar.

Não me apeteciam as valsas que compassadamente dançavam dentro de ti. Entonteciam-me os rodopios que desenhavas tão bem. Ouvia-te e renegava-te porque me queria lúcida. Bastava-me saber-te. Tudo, era demais.

Eu sou aquela que te queria absorver. E dentro de mim guardar-te. Como um tesouro em que nunca vou tocar. Assim serás sempre o que imagino de ti. Nada mais quero.

Ainda assim fiquei em ti e tu em mim. Duma breve maneira.

A cidade

A cidade cresceu longe de mim. Em lugares que julgava do mar e da serra. E deixou-me aqui a perder-me do que era, do que sou.
Vejo ainda quem passa e cresce ao ritmo dos dias que se transformam a cada momento. Não sei já quantas memórias contenho e por quanto tempo. Um dia serei também cinza destas lembranças, recordação em postais com pontas dobradas e amareladas.

Não sou nada. Não o é ninguém. Somos momentos em tempos que se escorrem como as areias das praias que beijo ao escoarem-se pelos dedos de ingénuas crianças. E só. E tanto!

Se o que ouço e vejo, se o que sinto e pressinto, fosse argamassa de tempo, seria eterno pelo tempo que a eternidade tem. Por tanto ser.
Mas é poeira, só poeira. Daquela que entra olhos dentro e os faz chorar.
Um choro cheio de saudades dum futuro a adivinhar. Onde as cidades, talvez, cresçam dentro de nós.

O bocejo e a lágrima

A principio, sabes bem, o que eles diziam não fazia sentido. Teres morrido significava que não voltavas mais para junto de nós, de mim. E para isso eu não estava ainda preparada. Na minha cabeça as histórias mais inverosímeis foram surgindo para explicar tudo quanto ia acontecendo. E eu sabia que ias voltar.
Lembro-me de quando entravam e irrompiam em choro e eu a par com eles como se não o pudesse evitar. Como com os bocejos, sabes? Parece quase contágio. Depois parava, o silêncio voltava e na minha cabeça as histórias continuavam a rolar como um filme... parecido com aquele que via quando o telefone tocou e tudo começou a mudar cá em casa. Tu não ias voltar mais.

E a minha cabeça a latejar... e as lágrimas a cair como bocejos. Queria pará-las e fazer rewind no filme que não parava de acontecer até que te vi.
Deitado com um ar solene. O sorriso que te deixara há muito não o procurei. Fecharas os olhos e não te mexias. Fiz o teu jogo. Não te iria denunciar. Sabia que já há muito tempo te querias ausentar dali, daquela vida. Era assim que o fazias.
Quando nos fossemos todos embora, levantar-te-ias e seguirias então o teu caminho. Só eu saberia o teu segredo. Nunca o diria a ninguém.

Só nunca percebi aquela mancha vermelha num pedaço de algodão que te vi na cabeça. Preferi pensar que era mais um disfarce.

No entanto, agora posso dizer-te e sei que me vais desculpar, as lágrimas que então me caíram deixaram de ser como bocejos.

quinta-feira, 4 de março de 2010

O chapéu

O chapéu de feltro com abas largas não deixava ver-lhe o rosto.
Encostado ao umbral da porta parecia agarrar-se a qualquer réstia duma qualquer vida que também ela parecia não se deixar vislumbrar. Se aquela parede não existisse ele cairia por terra. Era a sua coluna vertebral. O que ainda o sustinha erecto. Nada mais lhe dava motivo para assim estar.
Quem o pudesse observar podia ver uma gota de água a deslizar sem entraves por entre as rugas já acentuadas junto à boca. Demorava-se aí um pouco, como que para saciar a sede da dor que se adivinhava na curva descaída dos lábios.
Ninguém o ousava olhar.
Desviavam o olhar na impotência de nada poder fazer.
E ele afundava-se por ele dentro, feito mar, feito onda, desfazendo-se contra aquele umbral daquela porta, debaixo das abas daquele chapéu que o escondiam...
E todos, testemunhas, se recusaram a sê-lo.

quarta-feira, 3 de março de 2010

Não procuro


Não procuro homens como tu.
Não os conseguiria encontrar porque já nem sei como és.
Não procuro ninguém e tu sabes disso.
De tempos a tempos julgo ver no meu caminho alguém que me sabe ler sem perguntas. (Como eu te sabia sem o saber.) E depois se perde de mim. Como eu te perdi por tanta ausência. Por tanto tempo de permeio. Por tanto te imaginar.

Não se vive tanto tempo no imaginário alheio. Pelo menos sendo-se o que se é.
Passa-se a ser doutro sem que se saiba o que se é então.

Talvez não saibas agora o que és em mim.
Não és com certeza o que serás aí onde estás e não me dizes. Nessas ausências a que ambos somos e fomos alheios.
Não sabemos porque pecados.
Nem como os redimir.

Não procuro nem nunca encontraria.

terça-feira, 2 de março de 2010

Lembro-me

Lembro-me de te ver tardar a casa. Das tuas ausências cada vez maiores.
De olhar repetidas vezes da varanda da casa onde vivíamos para a rua para ser a primeira a ver-te chegar. Corria então até ao patamar e descia as escadas quase em voo para te saltar para o colo de que já sentia tanto a falta.
Não era em casa que entravas e eu ficava envergonhada atrás da porta até ganhar forças para subir as escadas cujos degraus me pareciam agora enormes e difíceis de transpor. Ia para o meu quarto, subia para a minha cama e a um canto enovelava-me e deixava as lágrimas caírem.
No meu sonho de menina-mulher tu eras só meu e cada instante que me era roubado era uma eternidade de que eu nunca conheceria o sentido. Só lhe saberia a dor que mais tarde recusaria sentir em cada homem que quisesse estar no lugar que afinal era só teu.

Nem sempre me apetece apaixonar.

Nem sempre me apetece apaixonar.

Mas às vezes enrosca-se em mim um desejo que me sufoca sem dó. Não percebo o que quer de mim quando estou tão bem assim.
Chama-me a visitar sítios que há muito não palmilho.

Viajo sózinha preenchendo meus espaços vazios com o alimento que minha alma vagabunda sabe tão bem fazer nascer.
Vadio sem rumos e sinto-me inteira.

Só quando me aperta este desejo percebo a falta que tu, ainda por inventar, me fazes!