domingo, 30 de setembro de 2018

Ainda

Não me queixo das dores do corpo. São elas que rebentam por dentro. Sem licença e sem perdão. Engano-as neste sorriso parido pelas bênçãos de estar viva. Ainda.

Nudez

É debaixo da pele que se escondem os segredos.
É pelo toque e o cheiro que se desvendam.
Corpo a corpo.
Cobertos de toda a nudez.

A folha

A folha. Não sabe do chão até que caia. Tem voos que só conhecem alturas. Como a gente.

quarta-feira, 8 de agosto de 2018

As horas

Não. O tempo não fala as horas. Nem as conta. Isso são coisas de gente.
E a vida passa ao lado dessas teimosias. Até que se precipita no fim dos dias.

Não me deixes

Não me deixes. Não me deixes a saudade. Esse vazio onde sobram todas as memórias. Ausente e longe que me ficas.
Sei os mapas dos teus voos. E chove no horizonte dos meus olhos.
Deixando-me, ficas-me. Réstea de esperança no abandono da espera.

Sete

dizes que
o peito tem mais
lembranças que uma memória,
cansada.

sentes que
se rasga a dor
pela mão que abraças
e te crava
o punhal afiado na carne
que lhe serve de cama.

sabes que
ainda te restas do muito
que eras em tanto
que levam no sopro
dos dias
por lugares
onde só voam

abutres

segunda-feira, 18 de junho de 2018

Ausências

 Tina Bering
Primeiro ausentaram-se as palavras. Das mais pequenas coisas. Amortalhadas num qualquer lugar. Longe da sua memória. E procurava-as incessantemente no remoinho de todas as outras. Entaramelavam-se e saíam a custo. Depois de tudo ser dito, assomavam-lhe em carreirinha e estranhava-lhes a falta na hora certa. Mesmo assim persistia acarretando dentro dela o peso de se perder. Até que os nomes e os lugares perdessem sinónimo dentro de si. E afligia-se. Cada vez mais. Por quanto tempo guardaria a chave que lhe permitia encontrar-se? Nesse dia estava com ele. Segura. Mas os passos apressados de quem tem muito para cuidar chegaram mais depressa, deixando-na atrás. E a ansiedade corroía-lhe os passos. Desnorteava-se . Chamou-o. Muitas vezes. Por outros nomes. O dele vagueava tropeçando em todos os que lhe vinham à cabeça. Deu um grito mais alto e ele virou-se. Viu-lhe os olhos cansados. Por quanto tempo aguentaria ele estas intermitências na memória que lhe era infiel. A ela. Arrependeu-se do grito e balbuciou as palavras que lhe restaram, vou conseguir, eu sei que vou conseguir. Esperava ainda que as palavras, os lugares regressassem e ela não pesasse mais aos seus ombros. Ele parou e esperou por ela. Depois apressou-a. O tempo faltava para que ele conseguisse fazer tudo. Ela já quase nada fazia perdida nos esquecimentos. Pediu-lhe que acelerasse os passos. Ah, como tudo lhe parecia vazio, sem sentido! Os lugares, os nomes, as palavras, todas longe. Só aquela montanha cada vez mais alta, cada vez mais longe de alcançar. E os olhos encheram-se de água. E o peito em ferida a romper por entre a pele. Sabia que o amava muito. As palavras gemiam de tanto sentir. E pronunciavam-se nos gestos. Cansados e desesperados de se fazerem entender. Não queria atar-lhe os passos. Essa seria a dor maior. Só uma palavra continuava integra nesse entendimento. E desejou que ela lhe cortasse as veias e lhe sussurrasse baixinho, está tudo bem, está tudo bem.