quarta-feira, 30 de junho de 2010

Sem perceber porquê



Lembrava-lhe o pescoço esguio onde pousava um rosto iluminado por dois olhos grandes na ânsia de ver mundo.
Lembrava-lhe a mansidão nos gestos que desenhavam as mãos compridas de dedos finos.
Não lhe saía dos ouvidos a voz que lhe dera de volta a a paz.

E quando se despedia embrulhava-se nas memórias que não lhe esqueciam. E nunca havia longe ou tarde. Porque mesmo quando partia, ficava.
Todas as despedidas anunciavam regressos feitos das lembranças guardadas num peito que as abraçava.

Agora encosta os lábios na curva que se faz ali junto ao queixo. Como sempre o fizera.
Só lhe falta a luz que os olhos fechados teimam em esconder. E nas mãos juntas sobre o peito calam-se gestos que antes se fizeram.
Dentro dele ecoa a voz que os seus lábios para sempre fechados prendem.

Lavam-lhe a face lágrimas que deixa cair livremente.
E sem perceber porquê, o que sente é paz.

domingo, 20 de junho de 2010

Mentiram-te



Mentiram-te quando disseram que te procuro.
Não procuro ninguém. Nunca o faço.
Só a mim me quero encontrar.

Dir-me-ás que é em ti que o faço.

Responder-te-ei que em tudo e todos me espalho e reconstruo.
Nunca serei inteira em ninguém se a nada mais pertencer.

Sou do ar que respiras e do vento que te afaga. Sou da terra que te embala e da noite que te traz os sonhos. Trago-te a luz das estrelas e o calor do sol que te aquece a pele. E não sou coisa nenhuma por não estar em lado algum.

Não te procuro, não. Não me procures também.
De tanto e tanta coisa ser nada de mim encontrarás.

quinta-feira, 10 de junho de 2010

Não há longe na distância.



não há longe na distância, meu amor.

e são as tuas palavras
tecidas e em manto estendidas,
nas noites longas,
que se enrolam em mim
e te fazem presente.

não há longe na distância meu amor.

a não ser que plantes silêncios
como cieiro
nos meus lábios
habituados aos teus...

não há longe na distância, meu amor.

quinta-feira, 3 de junho de 2010

Feitiços


Há feitiços que no decorrer do tempo se desvanecem porque nem isso são. São meros enganos que nascem do desejo de se fazerem reais. Valem pelo tempo que duram e merecem ser vividos. Nunca lamentados Perdurará o que se quiser. Nada mais poderá ser pedido. A ninguém. A coisa nenhuma.
A tudo deve ser dada a intensidade maior. O coração inteiro. E arrependimento nenhum.
Todas as lágrimas deverão encher os olhos. Só assim valerá a pena vertê-las.
Rios navegados pelas histórias que não esquecemos nunca.

quarta-feira, 2 de junho de 2010

Mais ninguem

Tinha uns olhos grandes que falavam. E diziam tantas coisas.
Transparentes como as lágrimas que neles se aninhavam para depois se soltarem em fios de prata.
Ficavam calados e bastava-lhes o silêncio. O silêncio e o trocar de olhares. Como se trocassem palavras.
Tanto mar por navegar naquele oceano enrodilhado onde só ele podia encontrar a ponta.
Falavam a mesma língua nos silêncios que plantavam entre si. E braços como remos faziam a caminhada com a leveza dum beijo soprado noite dentro.
Um rasto de sal, nada mais. Era tudo quanto restava das conversas partilhadas. Testemunho mudo e cego. E só ele para o seguir. Mais ninguém podia partilhar tais segredos.

terça-feira, 1 de junho de 2010

Nada mais


E à noite embrulhava-se num abraço esperando que todas as coisas retomassem o lugar.

Sabia que no longe das memórias se apagavam a pouco e pouco os restos da saudade que lhe dançavam no peito. Agora podia viajar mais serenamente.
Sempre detestara a força de tal forma de sentir. Olhando o passado na ânsia do mesmo futuro. Sentia-se agrilhoada e não queria tal prisão.

Era o sono que aguardava num desejo a fazer-se cada vez maior que lhe vestia então a paz.
Num mundo paralelo sonhava coisas que sabia desfazerem-se ao acordar. E abandonava-se. Ali nem memórias nem saudade existiam. E se a espreitassem teriam o tempo dum sono. Nada mais.

Nada mais.