segunda-feira, 27 de dezembro de 2010

Histórias dum tempo qualquer


Não tinha aparecido. Nem avisara sequer. Nada fizera prever que não viesse. Ainda ontem tinha acertado pequenos detalhes e lembrara-se até de mais uma pequena coisa. Uma coisa simples, mas que lhe dava a certeza que ele se tinha empenhado a sério no que iam fazer. Por isso fizera tudo como combinado e estava pronta e a horas no local que tinham acertado.

Estava frio e lá fora caía uma chuva de gotas pesadas. As pessoas passavam apressadas, algumas sem chapéus de chuva abrigavam-se onde podiam. Ficou a vê-las passar, esquecida de o ter sido.

Na mesa, um galão quente aquecia-lhe as mãos.
Um rosto colado ao vidro desperta-lhe a atenção. Dois olhos negros, cabelo preto, escorrido, meio despenteado, mãos ao lado da cabeça abrindo lugar para ver melhor e mais longe. Não tinha mais de 8 anos. Procurou-lhe o olhar, piscou-lhe o olho. Ele baixou os olhos cobrindo-os com as mãos. Ia virar-se e não resistiu. Olhou pelo canto do olho interrogando-se. Um novo piscar de olhos e desatou a correr rua abaixo.

Parara de chover. Levantou-se, lembrou-se do que tinha para fazer. Ia fazê-lo sozinha. Preferia tê-lo feito com ele. Ele é que tivera a ideia.
Fazia hoje anos. Em datas destas passava sempre despercebida, ninguém se lembrara ainda e ela com tanta azáfama também se esquecera. Pegou no carro e levou-o até ao fim da rua, ali já. Estacionou-o mesmo em frente do velho prédio, coberto agora de cores alegres e pinturas feitas por mãos de crianças. Esperavam-na já.
Vieram ter com ela e ajudaram-na com os sacos enormes que transportava atrás no carro. Vá indo e vá ver se está tudo como queria que estivesse!
Não, respondeu-lhes. Tenho ainda de me vestir, O meu amigo não pode vir.
Não se preocupe, vá. Queremos que nos diga se falta alguma coisa. Não queremos ver sorrisos?
Convenceram-na. Foi pelo silêncio do corredor enorme. Há muito que conhecia aquelas paredes. Era no salão do fundo que tudo ia acontecer. Antecipava já tudo. Andava devagarinho e quase em surdina como se temesse destruir de alguma forma o momento. Entrou, abrindo a porta lentamente e olhou para dentro da sala, banhada de luz, vinda do pátio exterior. Uma árvore enorme, onde os desejos de cada criança pendiam esperando o momento mágico de serem realizados, estava no canto esquerdo encostado a uma porta para a varanda. Eram rodas de carros velhos que não andavam, cartas com segredos desenhadas com letras envergonhadas, peúgas que perderam o par, fotografias de quem já não viam há muito tempo, folhas duma revista dum anúncio a um brinquedo qualquer, bolas feitas de papel, aviões, embalagens de sumo usadas... sonhos de quem está a aprender a sonhar.
Enquanto olha para a árvore não se dá conta de que noutro canto oposto se começam a levantar as crianças que começam a cantar os Parabéns. Primeiro assusta-se, depois sorri. Vira-se para as crianças que agora estão de pé e ouve-os emocionada até ao fim. É então que percebe que não tinha sido esquecida nesse dia. Nasceu-lhe um sorriso maior. Percebeu o que ia acontecer e no fim depois de agradecer pede a todos que se sentem porque acha que este vai ser um dia especial para todos.

E foi. Saíram um pouco do salão, deixando todas as crianças com os presentes que tinham trazido. Sentados nas escadas que levavam ao pátio, debaixo do telheiro, olham agora para trás e pensam em todas as coisas que fizeram para tornar este dia possível. Ela recorda-lhe o desencontro e ri-se. Não estás zangada, pois não? Dá-me um abraço.

Lá dentro, um rosto pequenino, olhos negros, cabelo esguio, preto, despenteado, abre caminho no vidro embaciado com a palma da mão, fazendo círculos. Espreita para o telheiro e vê-a abraçada. Sorri. Sem querer, bate no vidro. Ela vira-se. Pisca-lhe o olho. Ele também. Depois vai brincar, feliz.

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