sexta-feira, 30 de julho de 2010

Em memória


Às vezes desaparecia. Por largos períodos de tempo.
E de repente sem qualquer aviso estava por todo o lado, a toda a hora.

Da última vez que voltara, estava mais magro. Usava a barba por desfazer e dizia-se cansado. Parecia assim mesmo. Falava muito e depressa como se tivesse medo que se lhe acabasse o tempo antes das palavras que tinha para dizer. Cerveja atrás de cerveja molhavam-lhe a boca onde no canto nasciam pequenos pedaços de espuma branca.
Parecia não ter fim tanto que tinha por dizer. Não só aquilo que já vivera mas tudo aquilo que tinha para fazer. E as pessoas... Tantas e tanta coisa para começar e acabar!

Ninguém lhe entendia a urgência, mas ouviam-no. E de espaço a espaço acenavam-lhe um sim que lhe permitia continuar com a mesma energia. Sem perceberem bem porquê entendiam que precisavam alimentar aquela fogueira que sentiam acesa dentro dele. Nunca lhe tinham visto tal energia e tanto cansaço. Como se em tal ambiguidade estivesse suportada a sua vida.

Ainda assim sem quê nem para quê deixavamos de o ver por um dia ou dois. Que precisava de fazer umas coisas urgentes, voltaria. Já ninguém estranhava este comportamento. Nunca se faziam perguntas. Estranhavamos até que às vezes se justificasse.

Não lhe conhecíamos família mas sabíamos ter tido mulher e uma filha. Descobriamos agora no que nos dizia o que lhes tinha acontecido. Ajudou-nos a perceber porque fugira da vida durante tanto tempo. E tudo o que podiamos fazer era ouvi-lo.

Um dia não voltou mais.
Soubemo-lo quando foi notícia de jornal.
"Homem, entrega-se à polícia após ter morto violador não condenado de mulher e filha falecidas. Acaba por morrer devido a estado adiantado de doença."

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